Folha de S.Paulo

É menino ou menina? É um projeto

Alguns têm a vida dos filhos planejada até os garotos completare­m 60 anos

- Ricardo Araújo Pereira

Humorista, autor de ‘A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar’ e membro do coletivo português Gato Fedorento

Para os pais de crianças já é difícil: é preciso ajudar com os deveres de casa, ler a história antes de dormir, empurrar o balanço, passear, fazer piquenique, levar a 30 festas de aniversári­o por ano, comprar a roupa do ballet, levar no ballet, ir pegar no ballet, assistir ao sarau do ballet.

Mas há pais que não têm um filho, têm um projeto. Esses, eu não sei como é que fazem. Têm a vida dos filhos planejada até os garotos fazerem 60 anos. O que a criança aprende na escola não chega.

Quando o projetinho tem 6 anos já estuda mandarim. Dentro de pouco tempo, ninguém vai fazer negócios em inglês, e muito menos em português. Quem não souber mandarim, nem um sanduíche conseguirá comprar.

Também é importante tocar um instrument­o musical. O melhor talvez seja mesmo o violino, porque o piano não dá para levar e ficar praticando no caminho para o treino de futebol.

Resumindo: à tarde a criança sai da escola e vai para a equitação (bom para a postura). Depois, violino. A seguir, futebol. Jantar rapidament­e e uma hora de mandarim.

E convém ir dormir cedo, porque no dia seguinte, antes da escola, que não pode descurar, tem treino de artes marciais na academia (saber defender-se é importante).

Os pais do projeto estão, por isso, empenhados em criar um cavaleiro violinista carateca bom de bola que sabe fazer-se entender em Pequim.

Esse é, ao que tudo indica, o ser humano do futuro. Que ainda deve ter um doutorado em engenharia informátic­a.

Ou seja, uma espécie de Jackie Chan que gere uma empresa tecnológic­a multimilio­nária e joga no Real Madrid. Na verdade, isto não é um filho, são três ou quatro.

Os pais sonham que o garoto seja uma espécie de superherói rico. É sábio, talentoso, empreended­or e faz gols.

Parece o sonho de uma criança, mas é o sonho que alguns adultos têm para as suas crianças.

A educação que dou às minhas filhas é bastante diferente, mas tem tudo isto em conta: vou tentar convencê-las a estudarem psicologia.

Vão ter muita gente traumatiza­da por infâncias absurdas para tratar.

Assim que elas saírem da aula de ballet, comunico-lhes a minha estratégia. Teremos tempo para falar, porque hoje elas só têm duas festas de aniversári­o.

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Luiza Pannunzio

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