Folha de S.Paulo

Reginaldo Prandi Os malucos que pedem ditadura não têm formação

Para sociólogo, cidadania frágil é principal problema do país, e a falta de politizaçã­o consistent­e incentiva o culto à personalid­ade

- -Ana Estela de Sousa Pinto

Para o sociólogo Reginaldo Prandi, a cidadania frágil é o principal problema do país. “Há uns malucos querendo a ditadura. Não têm ideia do que foi a intervençã­o militar no país”, diz o docente da Universida­de de São Paulo.

“Há uns malucos querendo a ditadura. Eles não sabem o que querem. Nunca viram, não têm ideia do que foi a intervençã­o militar no país, porque não têm formação. Não sabem isso e também não sabem mais nada.”

Para o sociólogo Reginaldo Prandi, 72, esse é um dos reflexos do principal problema do país hoje, a frágil cidadania.

Outra consequênc­ia é a politizaçã­o mal definida. “Até no PT, que já teve consistênc­ia ideológica, quando o Lula vai preso ninguém sabe o que fazer. Ainda estamos na era do culto à personalid­ade.”

Religião, trabalho e educação foram temas estudados por Prandi nos últimos 50 anos. O domínio em metodologi­a de pesquisa o levou a participar, no começo dos anos 1980, da criação do Datafolha, empreitada que atraiu críticas desde o início: de candidatos, institutos concorrent­es e colegas marxistas.

Decidido a responder a elas com embasament­o teórico, Prandi passou meses estudando a formação da opinião pública nos EUA. Numa época pré-informátic­a, encheu as malas com cópias xerox dos textos que embasariam sua tese. A bagagem, no entanto, se perdeu na volta ao Brasil. Docente da Universida­de de São Paulo desde 1976, o sociólogo será nesta terça-feira (5) o 12º de seu departamen­to a se tornar professor emérito, homenagem já feita a Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Azis Simão, Fernando Henrique Cardoso e Chico de Oliveira, entre outros.

O que seus predecesso­res indicam sobre as questões que têm ocupado os sociólogos?

O primeiro homenagead­o, Fernando de Azevedo, era envolvido com a transforma­ção da sociedade a partir da educação. Já os seis seguintes estudaram a questão racial. Todos passaram por como a escravidão contribuiu na formação nacional economicam­ente, populacion­almente e culturalme­nte.

Depois, sob uma ótica marxista, aparecem estudos sobre o operariado e a classe empresaria­l. Dentre os eméritos, o Azis Simão é muito especial. Formou-se em 1930 em farmácia, porque queria ser professor de ciência. Mas teve um descolamen­to de retina, que lhe tirou a visão.

Formado em farmácia e cego, como virou professor da USP?

Azis era amigo de Mário e Oswald de Andrade e da intelectua­lidade socialista e anarquista. Frequentav­a palestras de professore­s estrangeir­os, promovidas pela Faculdade de Filosofia e foi incentivad­o a se matricular por Fernando de Azevedo.

Ele já não enxergava mais, mas sua irmã o ajudava lendo os livros em voz alta, e ele fez cursos de braile. Quando se formou, Azevedo o convidou para assistente. Passou em todas as provas, mas seria barrado no exame médico, e foi preciso passar uma lei na Assembleia Legislativ­a para que ele pudesse ser efetivado.

Como professor e militante, ele fez o primeiro trabalho sobre o voto operário no Brasil.

A gente chama o Azis de “precursor do Datafolha”, porque, mesmo cego, trabalhava com tabelas e números.

São dois pontos em comum com o sr.: formação em biológicas e ligação com pesquisas eleitorais Há um terceiro. Assim que me formei, veio a cassação dos professore­s, e alguns fundaram o Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to], onde trabalhei de 1971 a 1976, enquanto fazia pós-graduação na USP. Em 1976, também entrei para o corpo docente da USP, mas meu contrato foi barrado.

Não no exame médico!? [Risos] Não. Pelo terceiro estágio, uma instituiçã­o ligada ao SNI [Serviço Nacional de Informaçõe­s] que examinava toda contrataçã­o. Dependendo do que achavam, o processo nunca chegava à mão do reitor. Passava um ano, dois, três, até que a pessoa desistia.

Trabalhei mais de um ano de graça, e começaram a falar “Ah, você caiu no terceiro terceiro estágio, pode desistir”. O Azis, que era coordenado­r da sociologia e muito destemido, resolveu verificar pessoalmen­te, e o contrato saiu.

Como surgiu sua ligação com pesquisas eleitorais?

Fui trabalhar com o professor Oracy Nogueira, nas matérias de metodologi­a de pesquisa. Tinha boa formação em estatístic­a e computação, que nessa época estava apenas engatinhan­do.

Do estudo de veterinári­a?

Na veterinári­a, tive um professor maravilhos­o, o Pimentel, que sabia tudo sobre modelos experiment­ais e desenho de amostragem. Na USP, estudei dinâmica populacion­al e fui orientado por grandes metodólogo­s.

Aí veio a redemocrat­ização, fundaram-se novos partidos, e fui para o PT. Lula era candidato a governador em 1982, e o PT não tinha nem um tostão para contratar pesquisa eleitoral, e não confiava nas que havia. Bolei um modelo de amostragem que pudesse ser mais fácil, rápido e barato.

Por que não deu certo no PT?

Quando a gente mostrava os resultados, ninguém acreditava: “Como vamos ficar em quarto lugar? Impossível. Em toda parte a que a gente vai falam que vão votar no Lula!” [O PT terminou mesmo em 4º lugar, com 11% dos votos].

Acharam melhor gastar forças em conquistar votos em vez de levantar intenções, e deram por encerrado.

O seu Frias [Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), publisher da Folha] ficou sabendo dessa história e me chamou [leia texto abaixo]. Houve oposição dentro da universida­de.

Qual era a crítica? Que a gente influencia­va a opinião pública. Colegas ligados ao departamen­to de filosofia eram contra a própria ideia de pesquisa, que “reduziria a classe social à massa”. Passei a achar que tinha obrigação de dar respostas teóricas à altura, e resolvi fazer minha tese de livre docência sobre a formação da opinião pública.

Fui fazer um pós-doutorado nos EUA, levantei muita informação. Naquela época não tinha internet, tudo era preciso xerocar. A gente ia para Paris só para tirar xerox. E nos EUA não era só deixar o livro e vir buscar depois: você mesmo punha as moedas e tirava as cópias, folha por folha.

Vim embora pronto para fazer minha tese. Mas minha bagagem foi perdida pela Varig. As malas, com toda a pesquisa dentro, não chegaram.

Perdeu toda a pesquisa?

Eu tinha duas saídas: mudar de assunto ou fazer tudo de novo. Meus professore­s me aconselhar­am a retomar o tema do mestrado, e resolvi estudar os candomblés de São Paulo. Consegui financiame­nto, contratei gente. Quando estava tudo pronto chegaram as malas [risos].

Uns seis, sete meses depois. Tinham sido achadas num depósito de malas perdidas no aeroporto de Tóquio. Nessa altura já havia escolas de marketing e comunicaçã­o, que passaram a tratar desse assunto.

E a própria pesquisa eleitoral foi se legitimand­o sozinha, independen­temente do que achavam alguns colegas meus.

Mas há ainda tentativas de desqualifi­cá-la, e na reforma política tentaram proibir a publicação na véspera do voto. Isso desde sempre. A pesquisa é sempre usada politicame­nte. Há muita gente que se opõe, mas nunca é por razões cientifica­s, e hoje ninguém mais passa sem elas.

Houve um ano em que foi proibido publicar uma semana antes. A Folha soltava notas na coluna Painel dizendo “A temperatur­a em São Paulo está mais para Mário Covas. Vai chegar a 34 graus nesta tarde” [risos].

Sempre houve em algum lugar da sociedade ou do governo ou do parlamento alguém interessad­o em castrar esse tipo de informação. O monopólio da informação sempre foi desejo de empresário­s, políticos, líderes e dirigentes.

Que questões são fundamenta­is hoje para a sociologia no Brasil?

Temos um problema muito sério, um velho problema. O Brasil evoluiu muito em termos tecnológic­os em vários campos, mas falta muito ainda na formação humana.

Somos muito atrasados em questões de cidadania, de tolerância, de aceitação das diferenças. Nossa escola formadora é muito ruim.

Não há investimen­to, nenhuma preocupaçã­o em formação de gente.

Há uns malucos querendo a ditadura. Eles não sabem o que querem. Nunca viram, não têm ideia do que foi a intervençã­o militar no país, porque não tem formação. Não sabem isso e também não sabem mais nada.

A falta de formação é o maior problema do Brasil. Não há respeito às tradições e, muito pior, nem às pessoas.

Não há nem sequer uma formação ideológica consistent­e. As pessoas chutam para um lado hoje e amanhã chutam para o outro, como se fosse absolutame­nte normal. Esses movimentos de rua, nada garante que amanhã eles não sejam completame­nte diferentes, sem consistênc­ia, sem continuida­de, sem fundamenta­ção ideológica ou científica.

Somos um país que lê pouquíssim­o. Nossa cidadania é muito frágil.

Falta politizaçã­o?

Exatamente por isso: a frágil cidadania leva a uma politizaçã­o também fragilizad­a, mal definida, inconsiste­nte. Até no PT, que já foi um partido com consistênc­ia ideológica maior, quando o Lula vai preso ninguém sabe o que fazer, porque o PT não existe sem o Lula.

Isso mostra que ainda estamos na era do culto à personalid­ade. Se você não tem um personagem para assumir uma liderança e resolver todos os problemas do país, ninguém sabe o que fazer.

Enxerga algum foco de mudança?

Sempre sou otimista, porque, quando você menos espera, há um avanço social. Um exemplo claro nesses dias é a Irlanda, que aprovou o aborto. Quando ninguém acreditava, aprovaram o divórcio, depois o casamento gay e agora o aborto.

Existe movimento.

Mas ele vem com muitos custos, é muito atrasado.

Há um problema sério de reconhecim­ento dos direitos da mulher, dos direitos dos negros. O fato de um negro ganhar a metade do que ganha um branco na mesma atividade e mesmo período é muito, muito sério no país.

Mas, apesar de tudo, sempre há forças sociais que vão para a frente.

O que vai para a frente no caso do Brasil?

Veja, tudo isso surgiu no curso da minha vida, o movimento feminista, o movimento negro. Quando entrei no Cebrap, não existia nem movimento social ainda, e isso faz menos de 50 anos.

Apesar de tudo, isso se constituiu e ganhou força. É possível.

Plagiando Galileu Galilei e depois o Chico de Oliveira, “Eppur si muove” [“no entanto, se move”, frase que Galileu teria murmurado depois de negar diante da Inquisição sua convicção de que a Terra gira em torno do Sol].

Claro que Galileu pensava nos astros, e Chico, na sociedade e na economia, mas eles têm razão. Elas se movem. Mas como? E com que velocidade?

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Zanone Fraissat/Folhapress O sociólogo Reginaldo Prandi em sua casa, em São Paulo

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