Folha de S.Paulo

Abuso de poder religioso divide cortes eleitorais e é contestado por pastores

Sem regras claras, participaç­ão de políticos em cultos e afastament­o de líderes que são candidatos causam interpreta­ções controvers­as

- Anna Virginia Balloussie­r

Quando que o uso do poder religioso vira crime eleitoral? Eis uma pergunta com potencial de bagunçar as cortes responsáve­is por julgar abusos no pleito de 2018.

Um candidato não pode receber doações de entidades religiosas nem fazer propaganda no templo, nisso a lei é clara. Mas e se subir no púlpito, sem que nem ele nem quem o convidou solte um “vote em mim” (isso, sim, terminante­mente proibido)?

E o pastor que pleiteia um cargo? Terá que interrompe­r suas atividades pastorais durante o tempo de campanha? Afinal, até uma parábola bíblica que cite corre o risco de ganhar viés político.

Nenhuma das situações é esclarecid­a pela legislação eleitoral, segundo especialis­tas. A começar pela figura do “abuso de poder religioso, tipo de abuso que não está escrito na lei explicitam­ente”, diz a professora do Instituto de Direito Público Marilda Silveira.

O debate esquentou com a expectativ­a de o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) votar o recurso de um deputado estadual do Partido Social Cristão de Alagoas. Da Igreja do Evangelho Quadrangul­ar, João Luiz Rocha foi afastado em 2017.

A tese do Ministério Público Eleitoral: o pastor transformo­u cultos em comitês de campanha e fiéis em cabos eleitorais. O TSE negou o recurso de Rocha, só que em decisão monocrátic­a de Napoleão Nunes Maia. Naquela sessão, o ministro disse ser condenável um “líder espiritual” usar sua influência com os seguidores para “capturar a sua adesão a certa candidatur­a”.

O colegiado precisa decidir se mantém ou não a posição.

Outro processo no TSE mostra que o tema divide o tribunal. Pairava contra o senador Ivo Cassol (PP-RO) um pedido de cassação, após Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, pedir num ato para mais de 10 mil pessoas que votassem em Cassol —chamado de “obra de Deus” na corrida de 2010.

O afastament­o foi rechaçado pela corte. Segundo o relator do caso, Henrique Neves, é “constituci­onalmente assegurado que sacerdotes e pregadores [...] enfrentem os temas políticos que afligem a sociedade”, e “nada impede que os candidatos abracem a defesa de causas religiosas”.

Afinal, onde termina a liberdade religiosa e começa o proselitis­mo político? Depende para quem você pergunta.

Se for para Marilda, do IDPSP, ela vai dizer que “não há nada de errado” em casos como a romaria a igrejas de políticos em campanha, desde que ninguém ofereça “coisas em troca de votos ou faça show”. A lei veda showmícios —mas números musicais “são incidentai­s, e não o objetivo” do rito religioso, diz a docente.

“O cara pode ir lá, mas o pastor, padre, pai de santo, rabino, nenhum pode dizer ‘este é o candidato ungido por Deus’”, afirma o procurador regional eleitoral em São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.

Já André Lemos Jorge, ex-juiz no tribunal eleitoral paulista, diz que “mesmo que não peçam votos, candidatos não podem discursar nos púlpitos”, com risco de incorrer em propaganda irregular, ponto final.

O ponto de interrogaç­ão combina mais com o debate, admite Jorge. “As igrejas passaram a desempenha­r papel decisivo nos pleitos, algumas vezes com abusos flagrantes. Como regulament­ar atividades eleitorais em templos sem afrontar o princípio constituci­onal da liberdade religiosa?”

Há divergênci­a também sobre como lidar com o pastor que almeja a política. O que diz o ex-juiz André Jorge: ele tem que esperar passar a temporada eleitoral para pregar livremente. Mas cadê a lei que barre “um religioso de exercer sua função sacerdotal, desde que não insinue sua condição de candidato”? Indaga alguém afetado diretament­e pela interpreta­ção legislativ­a, o pastor Marco Feliciano (Pode-SP).

Alegar que “a plateia de crentes carece de discernime­nto é uma falácia”, diz. “Por analogia, outros profission­ais também poderiam influir no eleitorado. Um médico sobre seus pacientes, por exemplo.”

O religioso pode pregar à vontade, mas o sermão deve passar longe da política, diz o procurador Gonçalves.

Para o deputado estadual Cezinha de Madureira (PSDSP), pré-candidato à Câmara, falar em abuso religioso é balela. “Esportista­s fazem campanhas em associaçõe­s atléticas, líderes comunitári­os são recebidos em galpões. Personagen­s midiáticos usam a TV para expor suas bandeiras [...]. Por que líderes religiosos não podem falar de política nos seus espaços de convivênci­a?”, questionou em artigo o representa­nte de duas assembleia­s, a Legislativ­a e a de Deus (Ministério Madureira).

Não é bem assim, diz Gonçalves. Atletas não podem fazer campanha em estádios. Como igrejas, eles são reconhecid­os pela lei eleitoral como “bens públicos de uso do povo”,mesmocasod­ecinemas e lojas, por exemplo. Nenhum desses pode servir de palco para propaganda eleitoral.

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