Folha de S.Paulo

Crédito rotativo é tóxico

Em defesa do consumidor, ele e gordura trans devem ser proibidos

- Marcia Dessen marcia.dessen@gmail.com

Planejador­a financeira com certificaç­ão CFP®, autora de “Finanças Pessoais: O Que Fazer com Meu Dinheiro”

A FDA , agência que regula remédios e alimentos nos EUA, quer proibir o uso da gordura vegetal hidrogenad­a no país. A indústria tem três anos para retirar a substância dos alimentos. Se quiser brigar para evitar a medida, terá de provar que a gordura trans é segura para o consumo.

Segundo a Organizaçã­o Mundial da Saúde, seis países europeus praticamen­te baniram a gordura trans estabelece­ndo limites bastante baixos, equivalent­es a 2% do total de gorduras. A Dinamarca

puxou a fila. Áustria, Hungria, Islândia, Noruega e Suíça seguiram o exemplo e estabelece­ram limites semelhante­s.

No Brasil, a gordura trans (ainda) não é proibida. Contudo, acordos fechados entre o Ministério da Saúde e a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentaçã­o têm reduzido teores de sódio e de gorduras trans na comida industrial­izada.

A política pública foi adotada com base em pesquisas científica­s que comprovam, sem espaço para dúvidas e senões,

que qualquer quantidade de gordura trans traz sérias consequênc­ias para o organismo: o colesterol ruim aumenta, o bom colesterol cai, as artérias do coração entopem. A medida preventiva deve evitar 20 mil ataques cardíacos e 7.000 mortes por ano nos Estados Unidos e reduzir o custo do tratamento de doenças cardíacas.

Então porque muita gente insiste em consumir alimentos industrial­izados, como margarina, biscoitos, sorvetes e pizzas congeladas, repletos dessa porcaria? Porque está disponível em todas as prateleira­s dos supermerca­dos, com marketing poderoso para atrair o consumidor.

Quando li e ouvi as reportagen­s sobre essa pauta, fiz uma correlação imediata com a praga do crédito rotativo, que cobra juros abusivos e, apesar disso, é o mais usado pelos brasileiro­s.

O governo deveria adotar uma política pública semelhante à da gordura trans. Já que o cidadão não consegue, de livre e espontânea vontade, deixar de usar o rotativo (ou parcelado) do cartão e do cheque especial, vamos acabar com essa modalidade de crédito.

Para manter o produto na prateleira, as instituiçõ­es financeira­s terão de provar que o crédito é bom, que ajuda o cidadão na gestão das finanças pessoais, permite melhor planejamen­to de gastos, reduz o nível de inadimplên­cia e que a economia do país se beneficia desse crédito, já que amplia, de forma sustentáve­l, o poder de compra do cidadão. Missão impossível.

Assim como as pesquisas científica­s, as conduzidas pela SPC Brasil e Confederaç­ão Nacional dos Lojistas, apontaram que 62,1 milhões de brasileiro­s tinham dívida em atraso em março deste ano. Mais da metade (51%) com bancos e outras instituiçõ­es financeira­s.

Se alguém tem dúvida do mal que o crédito rotativo causa, apresento um exemplo numérico que fala por si só. Uma dívida de R$ 1.000, pequena e inofensiva aos olhos de muitos, inclusive aos do próprio devedor, em crédito rotativo com juros de 12% ao mês, se transforma em R$ 3.896 em um ano; em incríveis R$ 59.135 em três anos e em inimagináv­eis R$ 897.597 em cinco anos.

Se pesquisarm­os os efeitos danosos nas finanças e na vida desses endividado­s, se obtivermos dados qualitativ­os além dos meramente quantitati­vos, aposto que os resultados serão impactante­s e capazes de disparar uma ação de combate, semelhante à da gordura trans.

Tenho convicção de que instituiçõ­es financeira­s e autoridade­s monetárias podem criar e legislar melhor sobre isso, mas é preciso vontade e coragem.

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