Folha de S.Paulo

Governo é acusado de vender dados

Proteção de dados pessoais precisa valer também para o setor público

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio)

O Ministério Público do Distrito Federal começou na semana passada a puxar um fio que pode revelar uma prática que vem ocorrendo há anos: o governo, por meio do Serpro (Serviço Federal de Processame­nto de Dados), está vendendo as bases de dados de todos os brasileiro­s sem seu consentime­nto. Essa venda acontece não só para entidades privadas como também, inacredita­velmente, para outros órgãos públicos.

Os dados incluem nome completo, CPF, CNPJ, data de nascimento, nome da mãe, título de eleitor, domicílio, situação fiscal, dentre outros. A suspeita do MP é que esses mesmos dados estão servindo para alimentar sites como o “Consulta Pública”, que expõem informaçõe­s pessoais na rede —e que foi recentemen­te congelado por ação do próprio MP.

O Ministério Público formulou uma série de perguntas ao Serpro, e não obteve resposta. O órgão limitou-se a soltar uma nota, na qual basicament­e admite a prática afirmando que “as informaçõe­s às quais os contratant­es têm acesso são bancos de dados da administra­ção pública no limite do que permite a lei”.

Ao ser questionad­o sobre qual seria a lei que autoriza essa venda, o Serpro apresentou apenas a portaria 457 do Ministério da Fazenda de 2016 que, como o próprio nome diz, não é lei. Faltou informar também, por exemplo, quem são os contratant­es.

A venda dos dados está ocorrendo também para outros órgãos do próprio governo. Por exemplo, a Controlado­ria Geral da União (CGU) teria pago cerca de R$ 1 milhão em um contrato que incluía o acesso aos dados. Já o Conselho da Justiça Federal teria pago R$ 270 mil.

As perguntas feitas pelo MP que ficaram sem resposta são pertinente­s. Como funciona a extração dos dados? Desde quando o Serpro vende esses dados? Quem os adquiriu? Por qual preço? Que ti pode fiscalizaç­ão éfe itas o brequem adquire os dados para evitar que eles sejam repassados a terceiros?

Se forem comprovada­s as alegações do MP, o Brasil será o primeiro país do mundo a oficializa­r o vazamento de dados mediante pagamento. Enquanto outros países lutam para tornar suas bases de dados mais seguras e restritas, no caso brasileiro é só pagar para ter acesso a tudo.

Esse incidente demonstra a necessidad­e de que a lei de proteção de dados pessoais —atualmente em discussão no Congresso— aplique-se igualmente tanto para o setor público quanto para o setor privado, sem distinções. Um dos textos que estão sendo debatidos cria obrigações mais frouxas para o Estado e prevê que quem fiscaliza o Estado seja a própria CGU, em vez de uma autoridade de proteção de dados específica.

Por fim, não faz nenhum sentido que órgãos públicos tenham de pagar para acessar os próprios dados públicos. Países como a Índia ou a Estônia já adotam o princípio de que, se o cidadão autorizar, seus dados podem ser enviados para outro órgão público digitalmen­te, sem burocracia. No Brasil a autorizaçã­o está sendo ignorada. E seus dados viraram fonte de receita.

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