Folha de S.Paulo

Judiciário, crise e fascismo

Leva-se o clamor da opinião pública a condenar

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Fábio Wanderley Reis

Cientista político, doutor pela Universida­de Harvard (EUA) e professor emérito da UFMG

Fui gentilment­e convidado por esta Folha para um debate sobre a eleição presidenci­al e a conjuntura. Publicada em 24 de maio, breve notícia inicial sobre o assunto limita-se, quanto à minha participaç­ão, a combinar a informação sobre a associação que faço entre a Operação Lava Jato e riscos para a democracia com a qualificaç­ão de “fascistoid­e” dirigida ao juiz Sergio Moro —como diz o texto, por causa de “um artigo acadêmico de 2004 em que Moro defendeu a busca de apoio da opinião pública como parte essencial de uma estratégia de combate à corrupção”.

O debate tomou rumo polêmico, e com certeza usei a qualificaç­ão. Mas a menção feita a Moro remetia a uma reveladora passagem do tal artigo (para quem quiser conferir, “Operação Mani Pulite”, Revista CEJ, 2004, p. 61).

Nela, recorrer à democracia —note-se!— para o combate à corrupção é assimilado à possibilid­ade de contornar “a carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal” e ao “salutar substituti­vo” que a opinião pública pode constituir, “tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo”.

Ou seja: como provar crime é difícil, levemos, em nome da democracia, a opinião pública a condenar. É patente o caráter pouco democrátic­o desse suposto recurso à democracia, em que o clamor da opinião pública manipulada atropela direitos garantidos em lei.

Esse caráter marca várias ações ilegais de Moro, objeto de crítica e rechaço do próprio Supremo Tribunal Federal — embora, como os efeitos da crise certamente alcançam os escalões mais altos do Poder Judiciário, daí não tenham resultado sanções.

Mas, num aspecto central do que procurei dizer no debate, tratando justamente da opinião pública, procurava contrapor-me à leitura de outro participan­te, Carlos Pereira.

Vendo a opinião pública como entidade singular e expressão unânime do que pensa o país em dado momento, o que propunha Pereira redundava em santificá-la e torná-la o suporte sadio da redefiniçã­o punitivist­a que se vem manifestan­do no Ministério Público e no Judiciário —incluído, sem dúvida, o STF, onde ministros como Luís Roberto Barroso e a própria presidente Cármen Lúcia reclamam atenção, com insistênci­a, para coisas como o “sentimento da cidadania”.

O que aí se omite é que há opiniões públicas e “sentimento­s” diversos na cidadania, de modo especial em correspond­ência com divergênci­as políticas. Ainda que nossa desigualda­de leve a que os cidadãos de classe média ou acima tendam a ser também os formulador­es e operadores da opinião pública mais vocal —e, assim, a tornar ocasionalm­ente dominante uma opinião classista—, é preciso lembrar que, menos mal, todos os cidadãos dispõem do voto e que um Judiciário orientado pela opinião pública dominante estará benzendo judicialme­nte algo nítido em nossa crise atual: a opinião pública a se colocar contra o eleitorado. Fará, pois, política, e com frequência política de elite.

Quanto a fascismo, cabe ainda uma evocação dramática: a da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de 22 de setembro de 2016, que mereceria maior repercussã­o do que teve. Ela se refere justamente às ações ilegais de Moro, que serviam de base para o pedido de seu afastament­o por 19 advogados.

Por voto de 13 contra apenas 1 dos 14 desembarga­dores participan­tes (o do desembarga­dor Rogério Favreto), o tribunal acompanhou o que propôs o relator do processo, desembarga­dor Rômulo Pizzolatti. Reclamou-se a suspensão da relevância do “regramento genérico” vigente —incluída, naturalmen­te, a da própria Constituiç­ão— e invocouse, como apontou Favreto, a teoria fascista do estado de exceção. Ficou mais fácil, depois, condenar Lula.

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