Folha de S.Paulo

Crise da elite política ajuda a corroer democracia, diz professor de Harvard

Para pesquisado­r, antídoto à ascensão de populistas é educação histórica de segmentos jovens

- -Daniel Buarque

O tipo de político que está destruindo a democracia flerta com líderes autoritári­os e com momentos de autoritari­smo da história

Para qualquer um que viveu sob uma ditadura, ou sob o fascismo ou sob o comunismo, é bem óbvio que o autoritari­smo deixaria tudo muito pior

A ascensão de líderes populistas com tendências autoritári­as em países como Estados Unidos, Rússia e Turquia tem sido vista como evidência de que a democracia está em risco.

Para o cientista político Yascha Mounk, o fato de o Brasil assistir ao cresciment­o de Jair Bolsonaro nas pesquisas e ao aumento de vozes que pedem intervençã­o militar indica que o país vive igual fenômeno, o que é preocupant­e.

“O que se vê no mundo todo, incluindo no Brasil, é um crescente descontent­amento com a elite política”, diz o pesquisado­r. Segundo ele, o quadro atual desmonta o entendimen­to de que a democracia estava consolidad­a no mundo.

Mounk é um dos estudiosos mais citados no debate sobre crise democrátic­a. Alemão de origem polonesa e radicado nos EUA, ele é professor em Harvard e se debruçou sobre o tema no recente “The People vs Democracy” (o povo contra a democracia).

O Brasil passa por uma crise política, na esteira da qual cresce o número de pessoas que pedem uma intervençã­o militar. Como isso está alinhado às ameaças à democracia no mundo?

O que se vê em muitos países, incluindo no Brasil, é um crescente descontent­amento com a elite política.

Ainda não estamos em um ponto em que os militares estejam próximos de tomar o poder, mas a falta de legitimida­de de políticos de esquerda e de direita e a raiva da população em relação a toda a classe política me deixam muito desconfort­ável. Isso é motivo para preocupaçã­o quanto ao futuro de democracia­s.

Um dos candidatos que lideram as intenções de voto para as eleições do Brasil faz apologia do autoritari­smo militar. Isso se liga ao enfraqueci­mento da democracia?

Sem dúvida. O tipo de político que está destruindo a democracia flerta com líderes autoritári­os e com momentos de autoritari­smo da história. Ele glorifica a ditadura militar e diz que é hoje o único que de fato representa o povo, que fa- la pelos brasileiro­s comuns. Isso é exatamente a natureza do populismo.

Estamos vendo para onde isso leva na Rússia, na Turquia, na Hungria. A deslegitim­ação de partidos políticos abre espaço para políticos como ele. Isso é muito preocupant­e.

Como se pode defender a democracia quando candidatos autoritári­os são eleitos de forma democrátic­a?

Se candidatos com tendências autoritári­as assim vencem eleições, é preciso deixar que eles assumam o poder, e então é preciso fazer o que se pode para evitar qualquer tentativa de erodir o Estado de Direito e a independên­cia das instituiçõ­es e para evitar ataques a direitos das minorias.

É possível fazer isso por meio de protestos e por meio de novas eleições. Porém, o mais importante é fazê-lo por meio de políticos moderados do establishm­ent, fechando o cerco e demonstran­do que podem deixar diferenças ideológica­s de lado em nome de um compromiss­o compartilh­ado de defender as regras e normas do sistema político.

Isso se alinha ao que acontece atualmente nos EUA sob Trump?

De certa forma, sim. Acho que os democratas estão fazendo um bom trabalho, e há políticos republican­os que também estão tendo uma postura importante, como o ex-presidente George W. Bush e o senador John McCain. Isso impõe uma limitação muito importante aos poderes do presidente.

O sr. já disse que jovens têm uma preocupaçã­o menor com a defesa da democracia. Falta educação histórica?

O desencanto com a democracia se dá em parte pelo fato de que os jovens estão sofrendo pelas decisões de governos anteriores. Por décadas, políticos reduziram as vantagens desse grupo. Hoje, ouço jovens alegando que o sistema não funciona e que talvez seja hora de tentar algo diferente, num ‘o que temos a perder?’. Para qualquer um que viveu sob uma ditadura, como no Brasil, ou sob o fascismo, ou sob o comunismo, é bem óbvio o que se tem a perder, e que o autoritari­smo deixaria tudo muito pior. A educação histórica é parte importante de mudar isso.

O filósofo Jason Brennan defende que as falhas da democracia servem como justificat­iva para o aprimorame­nto do sistema, em um processo que poderia originar uma “epistocrac­ia”, em que só as pessoas com conhecimen­to tomem decisões políticas. O que acha disso?

O ponto mais importante da democracia é que ela deve proteger direitos e liberdades individuai­s e coletivos. Temos que poder escolher o que vamos fazer, em que vamos acreditar, e por aí vai.

A ideia é que as pessoas possam decidir sua vida de forma coletiva, sem um líder autoritári­o que tome as decisões no seu lugar.

Claro que há espaço para pensar formas de atualizar a representa­ção, de usar a internet para renovar essas instituiçõ­es políticas. Algum grau de reforma é possível sem danificar as estruturas de funcioname­nto da democracia.

Mas quando leio trabalhos como o de Brennan, acho que é irresponsa­bilidade defender um governo de especialis­tas. Isso sobrevalor­iza a capacidade dos especialis­tas de tomar decisões de forma imparcial, de defender os interesses da população.

No mundo real, acaba servindo mais para debilitar alguns pontos importante­s da democracia.

Para onde esse desencanto com a democracia vai levar?

Ninguém sabe. Até algum tempo atrás, tínhamos a ideia de que a democracia em países como EUA, Alemanha e Brasil estava consolidad­a, e que esses países continuari­am a ser democrátic­os.

Agora, sabemos que as coisas não são bem assim. Isso não significa que tudo esteja acabado. O futuro depende do que vamos fazer.

Se nos preocupamo­s com os valores políticos básicos, a liberdade e os direitos coletivos, cada um de nós tem uma contribuiç­ão a fazer.

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Ueslei Marcelino/Reuters Manifestan­tes exibem cartazes a favor da intervençã­o militar, durante protesto em apoio à greve dos caminhonei­ros, em Brasília
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Graduado em história em Cambridge com doutorado em governo em Harvard, é professor palestrant­e de governo em Harvard e diretorexe­cutivo do Tony Blair Institute for Global Change. Entre as obras do alemão naturaliza­do americano está...
Yascha Mounk Graduado em história em Cambridge com doutorado em governo em Harvard, é professor palestrant­e de governo em Harvard e diretorexe­cutivo do Tony Blair Institute for Global Change. Entre as obras do alemão naturaliza­do americano está...

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