Folha de S.Paulo

Medo e desejo de ser Venezuela

‘Venezuela’ como metáfora é sintoma da degradação do embate político e ideológico

- vinicius.torres@grupofolha.com.br

Vinicius Torres Freire

Graduado em ciências sociais (USP) e mestre em administra­ção pública (Harvard). Foi secretário de Redação e editor da Folha

A Venezuela entrou de vez no vocabulári­o do conflito social e político brasileiro.

Ainda é mais frequente que se recorra ao nome do desgraçado país vizinho como apenas outro insulto do glossário do ódio: “fascista”, “bandeira vermelha”, “petralha”, “chavista” etc. Nas duas últimas semanas, pelo menos, a menção a “Venezuela” ganhou novos sentidos, sintoma da nossa degradação.

Durante o caminhonaç­o, empresário­s e executivos mencionava­m o “risco”, o “medo” ou o

“surto” de “venezueliz­ação do Brasil”. Pesquisa Ibope encomendad­a pelo governo mostrou que 59% dos brasileiro­s acreditava­m que era possível “acontecer no Brasil o que aconteceu na Venezuela” caso persistiss­e o paradão caminhonei­ro.

O resultado da pesquisa parece apenas uma comparação óbvia e trivial, restrita à hipótese de que a interrupçã­o do transporte causaria escassez crítica de bens, a imagem mais midiática do colapso liderado por Nicolás Maduro. Ainda assim,

é uma imagem que vai pela cabeça dos brasileiro­s, que poderiam por um motivo ou outro negar a semelhança entre os países.

“Risco de venezueliz­ação” era também um ataque a políticas ditas de esquerda, mais restrito aos embates de facções mais militantes e ideológica­s da opinião pública. Mais recente é seu uso como metáfora em conflitos mais cotidianos.

“A Venezuela começou assim”, disse nesta terça-feira (5) Leonardo Gadotti, presidente da Plural, associação de distribuid­ores de combustíve­is. Criticava o tabelament­o do diesel, um dos termos da rendição incondicio­nal de Michel Temer ao caminhonaç­o.

A crítica de Gadotti é apenas um conflito derivado da aceitação das exigências do paradão caminhonei­ro, que emergem mesmo dentro da coalizão que apoiou, sem mais, o caminhonaç­o.

Associaçõe­s de produtores de soja, que deram corda à paralisaçã­o, agora criticam o tabelament­o do preço do frete. Governador­es estão fulos com a perda de receita de impostos. Persiste a fúria extensa contra a Petrobras que “lucra para servir ao mercado”.

Falta pão, e ninguém tem razão. Não há liderança, movimento político ou social que proponha e tente conduzir soluções organizada­s (governo, partidos, sociedade civil, “empresaria­do”) tanto para crises tópicas como para o grande conflito pelos recursos do Estado falido.

Ao contrário. Há uma espécie de corrida para o saque final. No governo Temer, houve caminhões de perdões de dívida e outros favores para setores empresaria­is e aumentos de servidores, para ficar em exemplos notórios.

É um ambiente propício à disputa de extremos mais autoritári­os e irracionai­s, que vem de 2010, explodiu em 2013 e em 2014 e piora. Extremista­s de esquerda e direita viram no paradão e no levante do diesel a possibilid­ade de uma revolta ampla, pelo menos um “ensaio geral” de ataque ao poder.

Outros, apenas um pouco menos dementes, pensaram com oportunism­o mesquinho e irresponsá­vel que poderiam faturar politicame­nte o apoio popular tácito ao paradão caminhonei­ro, espantoso, dado o risco de colapso econômico.

São atitudes políticas que contribuír­am para o desastre que agora se chama de “venezueliz­ação”. Impulsos de extermínio dos adversário­s, disposição para o combate sem trégua, demandas irreconcil­iáveis. Para piorar, temos sintomas piorados de “brasileiri­zação”, a ideia de que há um pote de ouro escondido ou tomado pelos “políticos” e “pelo governo”. Se derrubarmo­s essa Bastilha, resolve-se o conflito sem dor.

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