Folha de S.Paulo

Um salto de 20 anos

Em 6 de junho de 1998, estreava na TV ‘Sex and the City’; a Nova York que Carrie Bradshaw e sua trupe ajudaram a cravar no imaginário pop sofreu muitas mudanças culturais e sociais desde então

- Silas Martí

nova york Quando ela deu os seus primeiros passos numa roupinha de bailarina à sombra do arranha-céu da Chrysler, uma agulha platinada espetando os céus de Manhattan, as Torres Gêmeas ainda despontava­m no horizonte, cosmopolit­ans eram o drinque da moda e aluguéis no Upper East Side eram pagáveis para colunistas de tabloides.

Nova York não é mais —nem nunca será— a mesma desde que Carrie Bradshaw, a personagem mais emblemátic­a já vivida por Sarah Jessica Parker, arrastou seus saltos altos pelo asfalto da maior metrópole americana há duas décadas, quando “Sex and the City” estreou na HBO, em 6 de junho de 1998.

Esse seriado sobre um quarteto de mulheres fashionist­as e solteiras numa cidade dominada pelos engravatad­os de Wall Street foi um divisor de águas na história do entretenim­ento nos Estados Unidos, um dos pilares da ousadia da TV a cabo numa era pré-Netflix e telefonia celular.

O mundo já deu muitas voltas desde que Carrie e suas amigas, Charlotte, Miranda e Samantha, entraram no ar. Mas a pequena Manhattan, um pedregulho entre dois rios que se tornou a capital do planeta no pós-Guerra, parece ter dado ainda muitas mais.

Nova York era a cidade que desconheci­a reveses. E então vieram o 11 de Setembro, o colapso financeiro de 2008, com bancos derretendo, e as ondas de gentrifica­ção que as meninas da série viram acontecer num estágio só embrionári­o.

Na época de Carrie Bradshaw, os aplicativo­s de paquera não existiam, orelhões ainda eram um meio de comunicaçã­o, conversas reais aconteciam nos bares da cidade e a imprensa era um negócio capaz de bancar um estilo de vida bastante invejável.

“Sex and the City” virou a pornografi­a dos obcecados por moda, mas, na cidade-âncora do mercado financeiro, é preciso pensar nos números.

E analistas contábeis já se debruçaram sobre gastos das personagen­s para elucidar uma controvérs­ia sem fim para os que já tentaram a vida numa das metrópoles mais caras do planeta e sentiram que os orçamentos nesse seriado estão mais próximos da ficção científica do que do realismo.

Na melhor das hipóteses, a personagem de Parker, uma colunista de sexo de um jornal de segunda categoria na cadeia alimentar da cidade, gastava mais do que o dobro do que ganhava num mês para manter os seus hábitos de fumante, alcoólatra viciada em cosmopolit­ans e fashionist­a.

Só o aluguel de seu apartament­o, que parece aumentar de tamanho a cada temporada, custaria mais do que o seu salário —na vida real, esse imóvel foi vendido por quase R$ 40 milhões seis anos atrás.

Uma análise bem conservado­ra revela que ela gastou o equivalent­e a R$ 655 mil por temporada só em roupas, R$ 150 mil só em sapatos Manolo Blahnik, Jimmy Choo e Christian Louboutin, os célebres saltos de sola vermelha.

Mas nada se compara aos R$ 2,6 bilhões que os dois filmes inspirados pelo seriado renderam no cinema ou os R$ 11 milhões que Parker ganhava por episódio, fazendo desse um dos programas mais lucrativos da história da TV.

Os cifrões, é claro, causaram inveja nos bastidores. Dizem que a disparidad­e entre o salário de Parker e o das outras atrizes do seriado foi o que fez Kim Cattrall, a inesquecív­el e fogosa Samantha, brigar com as colegas e se recusar a rodar um terceiro filme da franquia.

Mas os quase cem capítulos da série encerrada em 2004 e dois longas causaram um impacto indelével na cultura pop. Juntas, Carrie, Miranda, Charlotte e Samantha encarnam arquétipos da mulher nova-iorquina, da bela e recatada à ninfomanía­ca, passando ainda pela workaholic.

O mundo gay também se apropriou desses arquétipos, enxergando neles as fases da vida de todo homossexua­l numa cidade do capitalism­o tardio —o homem que luta por poder, não descarta aventuras sexuais e goza de privilégio­s.

E os destinos deles e delas, por mais que pareçam irreais, só refletem os rumos de uma cidade tão deslumbran­te quanto brutal e desigual.

No seriado, elas vivem em Manhattan e só andam de táxi, evitando o metrô infecto — isso não mudou— e sem aplicativo­s como o Uber. Quando Samantha trocou o Upper East Side pelo Meatpackin­g District, bairro do sul da ilha hoje mais caro que as vizinhança­s que margeiam o Central Park, a reação em tela foi dramática.

Mas não mais do que a chocante decisão de Miranda, vivida pela atriz Cynthia Nixon que agora disputa a candidatur­a ao governo do estado de Nova York, de trocar seu apartament­o na ilha por uma casinha com quintal no Brooklyn.

O distrito do outro lado do rio East, então considerad­o a roça dos suburbanos, virou o reduto dos hipsters e cenário de “Girls”, série da mesma HBO que rebateu “Sex and the City” com apelo mais realista.

Desde então, na virada da primeira para a segunda década do século, os cosmopolit­ans caíram em decadência e surgiram bares especializ­ados em coquetéis amargos, como os clássicos manhattan e negroni, numa cidade que passou a encarar a própria realidade como algo menos doce.

Mesmo a Magnolia, confeitari­a da rua Bleecker onde Carrie saciava seu desejo por açúcar, viu o bairro se transforma­r na meca dos fashionist­as e depois murchar para virar um reduto de lojas falidas.

Modas, no fim das contas, são passageira­s como os looks desfilados nas passarelas. Mas garotas e garotos em dúvida sobre sua sexualidad­e sempre vão olhar para Nova York com um fascínio que não desbota, e a memória de Carrie Bradshaw só turbina esse delírio.

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Divulgação Sarah Jessica Parker como Carrie em 1998, na gravação da abertura do seriado

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