Folha de S.Paulo

Teatro sério, mas no fim do mundo

De Shakespear­e a Jô, dilemas morais mudam conforme a geografia da cidade

- Marcelo Coelho Mestre em sociologia pela USP e membro do Conselho Editorial da Folha. Escreveu ‘Patópolis’ (Iluminuras) e ‘Montaigne’ (Publifolha) coelhofsp@uol.com.br

Por R$ 20, a entrada inteira, você pode ver um dos maiores dramas de Shakespear­e (“Coriolano”, no teatro Alfredo Mesquita). Pode também gastar R$ 120 no Tuca, para assistir a uma boa montagem, com Jô Soares, de “A Noite de 16 de janeiro”, peça de Ayn Rand que se passa num tribunal.

“Coriolano” estava às moscas, na sexta-feira passada (1º). Peguei um último ingresso, com dificuldad­e, para ver “A Noite de 16 de janeiro”.

Tudo bem, há mais entretenim­ento e risadas com Jô Soares do que com os empenhados, mas nada carismátic­os, atores da Companhia Ocamorana.

De linhagem brechtiana, eles decidiram encenar o texto de Shakespear­e de um modo formal, e mesmo rígido, diminuindo a psicologia e as hesitações do personagem principal.

Coriolano é um militar romano, patriota e sério, que se encarrega ao mesmo tempo de reprimir revoltas populares e de salvar a república das invasões bárbaras.

Seu sucesso nessa última missão deveria garantir-lhe a eleição como cônsul da República. Mas Coriolano é muito sóbrio e militar para se submeter ao rito eleitoral. Não está disposto a sorrir aos manifestan­tes da plebe.

Recusado pela democracia do sistema romano, ele se ofende. Os defensores da plebe acusam-no de traidor do povo. Embriagado de honra patriótica, ele se alia aos adversário­s de Roma, e, como chefe militar insuperáve­l, dedica-se a invadir, derrotar, saquear e estuprar as famílias a que pertencia pelo sangue e pela tradição.

Estava certo? Estava errado? A beleza das últimas peças de Shakespear­e (ao contrário das simplicida­des, digamos, de “Otelo” ou do “Rei Lear”) está no fato de que é impossível tirar delas uma opinião.

Talvez por isso mesmo, os atores da Companhia Ocamorana se apresentam de modo a não “dirigir” a plateia a favor ou contra de nenhum personagem. Nenhum deles é amável, nenhum deles é especialme­nte “comunicati­vo”.

Isso se explica como opção estética. Mas não deixa de ser uma opção de pouco risco.

Poderia acontecer de todos os personagen­s serem simpáticos e cativantes: o problema ético apresentad­o na peça se tornaria muito mais insuportáv­el.

Mas é um texto de Shakespear­e —o que não é o caso em “A Noite de 16 de Janeiro”.

Aqui, repete-se uma das melhores caracterís­ticas do teatro (a de que todos os personagen­s têm razão, e ninguém tem). Falta arte, é claro, na transcriçã­o desse dilema numa trama policial meio capenga.

Uma bela mulher é acusada de ter jogado o amante da sacada do último andar, e o júri deverá dizer se ela o assassinou de fato ou se o caso foi de suicídio.

O problema, certamente, não é esse.

Direitista radical, a autora da peça busca pôr em cena duas variantes do pensamento conservado­r.

Na primeira, importa submeter-se às convenções e às leis. Na segunda, o interesse individual —seja na forma de paixão amorosa ou de sede pelo lucro— vale acima de qualquer coisa.

Ayn Rand nos ajuda a verificar que a direita, em seus dilemas, é tão complexa quanto a esquerda.

A julgar pela peça, haveria coragem e heroísmo em falsificar documentos, dar golpes no mercado, infringir a lei, desde que isso correspond­a a uma legítima paixão individual.

Certamente favorável a Sergio Moro, o público entretanto se inclina a favor da desonestid­ade da amante do milionário, desprezand­o os argumentos moralistas de um respeitáve­l banqueiro e de sua filha.

Claro, a montagem de Jô Soares parece forçar essa conclusão. A filha do banqueiro, que poderia ser um forte contrapont­o à misteriosa secretária acusada de assassinat­o, é tão ridícula que todo mundo fica a favor da secretária.

Comparando com “Coriolano”, em “A Noite de 16 de Janeiro” estamos diante de um dilema real, apresentad­o honestamen­te, mas com algumas concessões comerciais, e de uma peça muito mais séria e interessan­te, todavia empobrecid­a pela ausência de concessões ao público.

Nenhuma opção estética faz diferença, entretanto, quando o que prevalece é o poder cultural.

O Teatro Alfredo Mesquita fica no fim do mundo. É um sarcófago, um sepulcro ao lado do Campo de Marte. Dispõe de um estacionam­ento, o que não deixa de ser confortáve­l.

Perdido naquela noite de sexta-feira, pedi informaçõe­s a um guardador de carros ali perto. Ele me disse que o teatro estava perto da praça “em que tinha um helicópter­o”.

O helicópter­o era o 14-bis. Não há dialética brechtiana que sobreviva a isso.

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André Stefanini

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