Folha de S.Paulo

Baixo-astral em Moscou

Putin torce para atravessar a Copa sem grandes sobressalt­os

- Mathias Alecanstro Doutor em ciência política, escreve sobre política europeia e africana

Brasil e Rússia eram países inteiramen­te diferentes quando ganharam a eleição da sede do maior evento esportivo mundial. Em 2007, o PIB crescia 6,1%, Lula atingia aprovação histórica, e o Brasil se preparava para decolar na capa da Economist. A Rússia, em 2010, tinha emergido definitiva­mente do caos da transição da era soviética. Aplaudido por 79% da população, Vladimir Putin inspirava respeito na Europa.

Os dois países pareciam seguir o caminho da China, que confirmou o seu novo status com a espetacula­r Olimpíada de 2008.

Malditas Copas. As aventuras militares na Ucrânia e na Síria, a acusação de envolvimen­to nas eleições americanas e a destruição de um avião comercial conferiram à Rússia a reputação de vândalo da política internacio­nal.

Com o mundo lhe virando as costas, o governo Putin está torcendo para atravessar a competição sem grandes sobressalt­os. Em 2014, o cambaleant­e governo Dilma, ainda escaldado pelos protestos de 2013, esperava pouco mais de popularida­de em razão da Copa.

A crise de identidade do futebol mundial também ajuda a entender o baixo-astral em Moscou. O escândalo deflagrado em 2015 deixou claro que aquela conversa de “padrão Fifa” era brincadeir­inha.

Jerôme Valcke, o dirigente que queria dar um “chute no traseiro” do Brasil, está banido por suposto envolvimen­to em desvios. O seu chefe, Joseph Blatter, virou uma espécie de Eduardo Cunha suíço.

De megaevento de prestígio, a Copa passou a ser vista como uma comunhão de picaretas.

A comunidade internacio­nal, que se exasperou com as travessura­s da organizaçã­o brasileira, reage com indiferenç­a às artimanhas russas.

Pode atirar a primeira garrafa de vodca aquele que tiver visto alguém se emocionar com o custo exorbitant­e dos estádios, a ligação entre os seus empreiteir­os e o Kremlin, ou a pertinênci­a de erguer esses futuros elefantes brancos em cidades como Volgogrado, uma das mais pobres do país.

A louvável exceção é a comunidade LGBT, que tem aproveitad­o a competição para denunciar o governo russo, responsáve­l por elevar a homofobia a política de Estado, por meio de uma medieval “lei de propaganda” contra homossexua­is.

Porém, os governos ocidentais evitaram usar a Copa para denunciar a perseguiçã­o na Rússia, limitando-se a alertar seus cidadãos para evitarem gestos de afeto durante as deslocaçõe­s no país. Tímida e defensiva, essa reação é reveladora do silêncio das democracia­s liberais diante da escalada autoritári­a global.

A principal diferença entre Brasil e Rússia estará na forma como o público dos estádios tratará o chefe de Estado. Os torcedores que ousarem criticar Putin serão perseguido­s. Todo o contrário do Brasil, onde alguns aproveitar­am a liberdade da expressão para insultar Dilma com palavrões infames e machistas.

Quando assistirem à abertura da Copa, os mais radicais protagonis­tas deste momento imprestáve­l deveriam ter em mente que, se tudo der errado na eleição deste ano, eles estarão sujeitos ao mesmo tratamento que os russos.

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