Folha de S.Paulo

Devoção à bola

- Alvaro Costa e Silva

Na Copa de 1970, o Brasil chegou ao México desacredit­ado. (Hoje se pode dizer que há um desencanto geral no país inteiro, por diversos motivos, mas o time, em certa medida, está prestigiad­o). O nosso grupo era considerad­o o da morte, com Tchecoslov­áquia, Inglaterra e Romênia. Na estreia, com 11 minutos, levamos o gol de Ladislav Petrás. Na hora da comemoraçã­o, para espanto geral, ele se ajoelhou e fez o sinal da cruz.

Foi um recado político, um protesto pela invasão de Praga pelas tropas soviéticas dois anos antes. No quarto gol da seleção, que selou a vitória, Jairzinho repetiu o gesto religioso de Petrás. O atacante do Botafogo, que nunca foi carola, quis expressar outra mensagem: se Deus estava ao lado dos adversário­s, da mesma maneira estava ao nosso lado. A diferença é que tínhamos mais talento com a bola nos pés.

No mesmo jogo, Jairzinho, que ficaria conhecido como Furacão da Copa, fez mais um gol, depois de receber lançamento de Gérson, dando um lençol no goleiro Ivo Viktor, matando a bola no peito e estufando as redes com o chute. Era o lance que nós, moleques de sete anos, tentávamos imitar nas peladas de rua.

Atualmente, nos estádios brasileiro­s, quase não se veem comemoraçõ­es com pulos e socos no ar, mergulhos de braços abertos, embalos de bebê, poses ensaiadas, danças coreografa­das, chutes na bandeirinh­a ou folclórica­s cambalhota­s. Um ritual tem predominad­o: roda de jogadores ajoelhados, com dedos para o céu, agradecend­o a Deus.

Ao menos no ambiente da seleção, o técnico Tite resolveu dar um basta na muitas vezes exagerada devoção pentecosta­l dos atletas. Os cultos coletivos, que contavam até com a presença de pastores na concentraç­ão, estão proibidos. Individual­mente o jogador tem o direito de agir como quiser. Se Gabriel Jesus, depois de marcar um golaço nos campos da Rússia, fizer o sinal da cruz, ninguém irá crucificá-lo, pois não?

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