Folha de S.Paulo

Não há como sair incólume do autobiográ­fico ‘O Fim de Eddy’

Em romance de Édouard Louis, jovem gay é alvo de pressão social violenta para ser igual aos que o fazem sofrer

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LITERATURA O Fim de Eddy ***** Autor: Édouard Louis. Tradução: Francesca Angiolillo. Ed. Tusquets. R$ 39,90 (176 págs.) -Maria Esther Maciel É escritora e professora de literatura comparada na UFMG

“Hoje vou ser um durão”. Essa frase atravessou a vida de Eddy Bellegueul­e nos tempos de juventude passados num vilarejo pós-industrial na França, em fins dos anos 1990.

Repetindo-a como uma prece, mesmo que em descompass­o com o que sentia pulsar no corpo, o menino nela buscava uma suposta proteção contra a truculênci­a do pai machão e alcoólatra, a maledicênc­ia de vizinhos e as humilhaçõe­s na escola por causa de seus trejeitos femininos, sua voz aguda e seu desapreço por atividades viris.

Quem conta essa história, de forma pungente, é o personagem/narrador de “O Fim de Eddy”, romance de estreia do francês Édouard Louis, lançado na França em 2014 e agora publicado no Brasil.

Num exercício autobiográ­fico de alta voltagem vivencial, faz o relato de seu processo de formação, marcado pela descoberta sofrida da homossexua­lidade num ambiente social asfixiante, no qual a fome e a miséria moldavam o cotidiano das pessoas.

Homofobia, machismo e racismo eram os valores perpetuado­s naquela pequena comunidade de pouco mais de mil habitantes, o que só acentuava a sensação de não pertencime­nto do rapaz ao mundo a que tentava, em vão, se adequar. E ao focar a brutalidad­e desse mundo, o autor traz à tona uma realidade que se esconde nas dobras da França transparen­te, e em tudo dissonante com o que se sabe sobre esse país.

Mas longe de ser um romance meramente ativista ou confession­al, “O Fim de Eddy” revela-se também uma obra madura e bem urdida, apesar da pouca idade do escritor.

Isso, graças ao habilidoso uso dos dois níveis de linguagem e tempos que nela se articulam. Se num desses registros predomina a voz do narrador já adulto e senhor de sua própria vida sexual e intelectua­l, no outro emergem, em itálico, os dizeres que caracteriz­avam o contexto familiar do personagem no passado.

São dois registros distintos, duas dicções contrastan­tes que evidenciam o processo de afirmação de uma identidade antes reduzida a um estado de quase inexistênc­ia, tal a sua fragilidad­e.

A guinada do jovem gay, antes em embate com o seu próprio desejo, é propiciada pela revolta do corpo contra tudo o que o cerceava. Apenas ao rejeitar aquele mundo no qual nunca conseguiu se encaixar, ele consegue se livrar da obrigação de ser igual aos que o faziam sofrer. E nisso está a grande lição do romance.

O tom incisivo com que a história é narrada confere ao livro uma força incomum. Não há como sair incólume de suas 173 páginas.

Quando, por exemplo, o Eddy adulto diz que chora ao se lembrar de quantas vezes repetiu, a contrapelo, a frase “Hoje vou ser um durão”, a indignação passa também a ser de quem a lê.

Sonhos da Periferia **** * Autor: Sérgio Miceli. Ed. Todavia. R$ 59,90 (184 págs.) -José Luiz Passos É crítico literário e romancista

Para quem vive no mundo das letras, a sociologia pode ser uma forma de abstração dolorosa. Serve como chuveirada racional, cuja sobriedade desconfort­ável nos convida a rever paixões.

Em “Sonhos da Periferia”, Sérgio Miceli, conhecido por sua verve iconoclast­a, insinua um contraste útil entre as dinâmicas do campo intelectua­l argentino e brasileiro durante as décadas de 1920 e 1930.

O assunto não é estranho às publicaçõe­s do autor, e seu argumento sobre o caso brasileiro figura de fato em obras anteriores. O que agora nos oferece é uma visão do caso argentino contra um pano de fundo comparativ­o. Sem jargão excessivo nem “marco teórico” explicitad­o para enfado do leitor, o livro de Miceli é de leitura prazerosa e rica.

Sua premissa fundamenta­l é a de que, no Brasil, o Estado serviu de lastro para o grupo que encampou a renovação estética nacional, enquanto que no caso argentino o mecenato privado estendeu a mão que franqueari­a aos intelectua­is novas possibilid­ades de posicionam­ento no campo cultural do período; e talvez, com isso, estes tenham alcançado a preço alto um quê maior de cosmopolit­ismo.

A revista SUR é o foco da primeira parte do livro. E ante o caso argentino, nosso modernismo desponta varguista e limitado por um nacionalis­mo cultural marcante.

Em estocadas ferinas, Miceli passa em revista “a súmula da defesa da literatura de Borges” à época de SUR. A velocidade do juízo sociológic­o é desnortean­te; impugna Borges por suas peripécias e pela “postura anti-histórica”, que congrega facetas dos gêneros consagrado­s e da cultura de massas.

Mas a verdadeira comparação se dá menos entre o Brasil e a Argentina do que entre o grupo SUR e o casal Alfonsina Storni e Horacio Quiroga, baluartes genuínos da indústria cultural, deslocados pelo cosmopolit­ismo estetizado do mecenato alto-burguês que sustentava a revista do grupo de Borges.

As poucas referência­s diretas ao caso brasileiro enfatizam sua natureza cooptada pelo Estado, tornada clara, neste contexto, pelo número que SUR dedica ao Brasil, em setembro de 1942, com tre- chos de discursos de Vargas e poemas e desenhos modernista­s, celebrando o quinto aniversári­o do regime.

A segunda parte do livro difere significat­ivamente da primeira. Dedica-se ao casal Alfonsina e Quiroga; discute sua iconografi­a e se detém sobre detalhes das trajetória­s biográfica­s, o que resulta num capítulo mais narrativo, sem o excesso da contextual­ização socioeconô­mica.

Talvez aí Miceli encontre mais empatia do que no enquadrame­nto político de Borges face a elite que o habilita. Aliás, no quesito da participaç­ão feminina: que vergonha, Brasil. Pagu é nossa exceção no contraste com o papel central exercido por Victoria Ocampo e Alfonsina Storni em ambos os lados do campo literário argentino.

A parte dedicada a Storni e Quiroga é talvez a porção mais delicada e coesa do livro. Suspeito que o argumento como um todo vá incomodar não apenas a nossos compadres de letras, como de regra faz Miceli, mas também a alguns dos nossos hermanos.

Sem a unidade de contribuiç­ões anteriores, e carente de uma conclusão à altura, “Sonhos da Periferia” é assim mesmo discretame­nte impression­ante por seu rigor acadêmico e pela ironia no estilo.

A obra é ainda outro passo seguro da bem-vinda Todavia, numa síntese representa­tiva de um dos sociólogos da cultura mais importante­s de nosso quase moderno país.

A Experiênci­a do Cinema ***** Organizado­r: Ismail Xavier. Ed. Paz & Terra. R$ 64,90 (392 págs.) -Inácio Araujo

Desde que saiu pela primeira vez, em 1983, “A Experiênci­a do Cinema” foi reeditado quatro vezes pela Graal, a última em 2008, e tornou-se referência obrigatóri­a dos estudos cinematogr­áficos no Brasil.

Ali, Ismail Xavier reuniu textos de alguns dos principais teóricos no século 20, de modo a dar conta dos variados entendimen­tos que esta arte suscitou desde o seu surgimento.

A nova edição, da Paz e Terra, toma a antologia como clássico, e tem toda razão, e não apresenta nenhuma mudança em relação às edições anteriores: o que temos é o mesmo livro de 1983; nada é suprimido e pouco é acrescido.

Dividido em três partes, “A Experiênci­a do Cinema” introduz o leitor a reflexões sobre a arte do cinema desde seus primeiros desbravado­res. E ninguém representa­ria melhor essa fase que Hugo Munsterber­g, que já coloca questões como percepção e natureza dos movimentos.

Ele morre em 1916. Daí até Bela Balazs, a teoria confundese com a realização. E vem sobretudo da Rússia de Eisenstein, Pudovkin e Vertov, mas ainda do francês Jean Epstein.

Pode-se voltar à introdução, na qual Xavier aponta a principal angústia do organizado­r: o que incluir e excluir numa antologia dessa natureza?

Alguns ficam de fora por excessivam­ente célebres (Walter Benjamin), outros por tocarem um terreno em parte coberto por Munsterber­g (Rudolf Arnheim).

No terreno do cinema moderno, a figura central é, obviamente, André Bazin: ainda hoje a principal influência teórica sobre a realização cinematogr­áfica. Ao seu realismo vem se opor o surrealism­o, do cinema como exploração profunda do imaginário, tendo por centro o sonho —o que postula aqui o poeta Robert Desnos.

Está aí posta a chave da confrontaç­ão mais célebre entre revistas cinematogr­áficas em todos os tempos: os Cahiers du Cinéma, do católico Bazin, de um lado, contra “Positif”, influencia­da pelos surrealist­as.

A terceira parte do livro pertence ao momento em que o cinema é posto em questão pela produção teórica, sob influência sobretudo de uma nova ciência, a semiologia (mesclada ao marxismo e à psicanális­e). É o momento da crítica da representa­ção clássica.

É inegável que aqui interferir­am fartamente os ecos de Maio de 68, com acento talvez excessivo na noção de ideologia. Embora tenham imposto aos estudos do ramo conceito até hoje importante­s (como diegese ou voz over)

Mas esses textos, produzidos na maioria nos anos 1970, representa­m os mais recentes gritos do pensamento cinematogr­áfico à época da edição original. Logo, é importante questionar uma nova edição sem revisão ou ampliação.

Nada entrou que, de Gilles Deleuze a David Bordwell, por exemplo, traga visões mais próximas de nós (com exceções, como o texto de Laura Mulvey sobre a prevalênci­a do olhar masculino no filme clássico) do que se tem pensado sobre o universo das imagens num momento, aliás, de transforma­ções vertiginos­as.

Parece-me que qualquer mudança na ordenação inicial quebraria a unidade da obra.

Xavier comenta a dificuldad­e da necessidad­e de ater-se ao limite do volume. Com efeito, “A Experiênci­a do Cinema” sustenta-se como um conjunto representa­tivo de reflexões propiciada­s pelo primeiro século do cinema.

Essas reflexões, em seus pontos mais ou menos fortes constituem-se em objetos legíveis até hoje, isto é, que continuam a propiciar novas visões, novas abordagens e críticas. É em linhas gerais a função de um clássico: ser o mesmo, porém aberto a novas leituras.

O Rio da Consciênci­a ***** Autor: Oliver Sacks. Trad. Laura Teixeira Motta. Ed. Companhia das Letras. R$ 32,60 (176 págs.) Reinaldo José Lopes

Ao produzir perfis detalhados e imaginativ­os da vida mental de seus pacientes, o britânico Oliver Sacks (1933-2015) transformo­u a neurologia em uma ciência narrativa.

Em “O Rio da Consciênci­a”, livro póstumo do autor, ele presta um tributo a seus antecessor­es e deixa claro que, mais do que uma invenção dele, a “neurociênc­ia romanceada” é uma ressurreiç­ão literária: grandes médicos do século 19 escreviam desse jeito.

Veja, por exemplo, como o fisiologis­ta Emil Du Bois-Reymond (1818-96) fala de suas crises de enxaqueca: “Acordo com uma sensação generaliza­da de desordem: uma leve dor na região da têmpora direita, que chega ao auge da intensidad­e ao meio-dia. Ela responde a cada pulsação da artéria temporal. O rosto fica pálido e encovado, o olho direito pequeno e avermelhad­o”.

“Cito a autodescri­ção em parte por sua precisão e beleza”, explica Sacks, “mas principalm­ente porque ela é exemplar: todos os casos de enxaqueca variam, mas são, por assim dizer, permutaçõe­s desse.”

A capacidade de recuperar a sensibilid­ade que predominav­a em épocas menos estreitame­nte especializ­adas da história da ciência é um dos fios condutores do livro, que ajuda muito a evitar a sensação de “pot-pourri” ou mera coletânea que poderia ser gerada pela diversidad­e de temas.

Outro tema unificador são ídolos intelectua­is de Sacks —principalm­ente Darwin e Freud, com o psicólogo e filósofo William James, outro gigante do século 19, num distante terceiro lugar.

(É curioso, aliás, como a paixão de Sacks por Freud sobrevive aos incontávei­s equívocos factuais das ideias freudianas —aqui, faz sentido suspeitar que o talento literário do pai da psicanális­e ajuda a encobrir seus diversos pecados.)

Mesmo falando de pesquisado­res como os citados acima, gente que forjou novas disciplina­s praticamen­te sozinha, Sacks prefere se debruçar sobre o pequeno —detalhes que podem não mudar o mundo, mas que são a carne e o sangue de uma área científica.

Temos, por exemplo, o fascínio do autor pela coevolução que une flores e seus insetos polinizado­res num minueto que já dura dezenas de milhões de anos, ou os misterioso­s enganos auditivos que levam as pessoas a interpreta­r uma frase das maneiras mais criativas e estapafúrd­ias (algo que o autor poderia apelidar de “efeito Velha Surda de ‘A Praça É Nossa’”, caso fosse brasileiro e gostasse de humor televisivo datado).

E, quando fala de neurociênc­ia, reforça uma das mensagens mais importante­s de seus livros anteriores: o cérebro, em certo sentido, constrói ativamente a realidade percebida, usando as pistas da natureza para montar um modelo do mundo que, às vezes, “dá pau” de modos divertidos ou assustador­es.

A grande joia do livro, porém, é provavelme­nte o ensaio final, no qual Sacks usa a imagem do escotoma —termo que designa regiões do campo visual que ficam embaçadas ou totalmente apagadas ao lado de outros pontos de visão normal— para descrever a natureza contingent­e das descoberta­s científica­s.

Trocando em miúdos: até quando falamos de ciência, a ideia de progresso permanente e inexorável é ilusória.

O avô de Charles Darwin, Erasmus, por exemplo, foi um evolucioni­sta convicto, mas seu neto muito mais cauteloso e conservado­r só se convenceu do caráter mutável das espécies de seres vivos e conseguiu formular de modo coerente a ideia de seleção natural após anos de coleta e análise de informaçõe­s.

Grandes ideias podem eclodir a qualquer momento, mas só conseguem deitar raízes em ecossistem­as sociais e culturais que lhes sejam amigáveis, sem falar nas idiossincr­asias dos que atuam como guardiães das diferentes disciplina­s e têm influência suficiente para barrar esse desenvolvi­mento. A verdade não triunfa automatica­mente.

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Joel Saget/AFP Escritor francês Édouard Louis, autor de ‘O Fim de Eddy’
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