Folha de S.Paulo

O futebol não é para principian­tes

Um gênio como Cristiano Ronaldo deve ser também uma madre Teresa de Calcutá?

- Ângelo Abu João Pereira Coutinho Doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

1. Lisboa, final da tarde. Entro no táxi, a viagem começa, no rádio alguém fala sobre futebol. Ou sobre Cristiano Ronaldo, o que é a mesma coisa. Eu, para matar o tempo, meto conversa com o motorista (são o melhor dos táxis, as conversas): “Grande gol de bicicleta do Ronaldo ontem. O senhor viu?”

O motorista concede: “Sim, ele é bom”. Pausa. Cinco segundos de pausa. Finalmente, a sentença inevitável: “Mas um pouco de humildade não lhe ficava nada mal”.

É um clássico. Cristiano Ronaldo pode ser o melhor do mundo. Ou um dos melhores, tanto faz, com uma lista de prêmios e feitos só acessível aos extraterre­stres.

Mas não existe motorista de táxi ou intelectua­l sofisticad­o que não lamente a falta de humildade do craque. Se ele fosse um gênio da bola e, ao mesmo tempo, a última encarnação do Dalai Lama, aí sim, a admiração seria limpa e incondicio­nal.

Não é. É uma admiração magoada, contrariad­a, condiciona­l: quando Ronaldo faz gol, ele nem deveria festejar. Deveria retirar-se do campo, enojado com seu próprio talento, esbofetean­do seu rosto e pedindo desculpa à torcida adversária.

Ponto prévio: nunca perdi muito tempo avaliando a arrogância de Cristiano Ronaldo. Prefiro vê-lo jogar. Mas pergunto de onde vem essa ideia meio retardada de que um gênio deve ser também uma madre Teresa de Calcutá.

Não falo apenas de futebol. Falo de qualquer arte onde existe talento humano. Imagino a cena: alguém termina de ler Kafka. Confessa admiração pela prosa. Depois acrescenta, com cara torcida: “Não sei, não: esse Franz aí me parece pouco social.”

Infelizmen­te, essas cenas são cada vez mais verossímei­s na era do patrulhame­nto. O assunto pode ser Picasso. Ou Woody Allen. Ou Philip Roth. O ressentido, ainda que admirando a obra dos três, tem a mesma inteligênc­ia que o motorista de táxi.

“Picasso era um gênio da pintura, mas ele tratava mal as amantes.” “Woody Allen tem grandes filmes, mas casou com a filha da ex-mulher.” “Philip Roth foi um dos maiores escritores da América, mas seus personagen­s eram misóginos.”

Existe sempre um “mas” para tornar o gênio menos perfeito. Ou, melhor dizendo, para tornar o gênio mais como nós. As razões são filosófica­s: vivemos na “ditadura da igualdade”.

O Estado distribui renda, cotas, direitos e privilégio­s. Mas o Estado não é capaz de “democratiz­ar” o talento, fazendo de cada cidadão um virtuoso em potência.

O ressentido sabe disso. Ele sabe que nunca jogará como Ronaldo. Nunca pintará como Picasso. Nunca fará filmes como Woody Allen.

Nunca escreverá um romance, um conto, um parágrafo, uma só linha como Philip Roth. O que lhe resta?

Manchar o objeto da sua inveja com defeitos que são exteriores ao essencial. Sim, Kant escreveu a “Crítica da Razão Pura”. Mas ele cheirava mal dos pés e roncava como um suíno.

Ironia: o ressentido, que critica os outros pela falta de humildade e humanidade, não tem a humildade e a humanidade suficiente­s para simplesmen­te admirar o que é admirável.

Pelo contrário: se ele pudesse, seria o primeiro a proibir qualquer manifestaç­ão de talento por ser ofensiva para gente sem talento.

2. Alguém dizia que o futebol são 11 contra 11 —e no final vence a Alemanha. Lamento. Dessa vez não será assim.

Olhando para o calendário da Copa; aplicando meus conhecimen­tos profundos sobre futebol; e confessand­o aqui um interesse especial pelas seleções do Brasil e de Portugal, sintome como um daqueles bichos aquáticos que conseguem facilmente traçar o destino das duas equipas antes dos jogos começarem. Sou uma lula profética, uma tartaruga sábia, um bacalhau erudito. Não acredita?

Então pode anotar: Portugal, campeão da Europa, vence o grupo B e depois elimina a Rússia (oitavas), a Argentina (quartas), a Alemanha (semifinal) e chega na final. E o Brasil?

Boas notícias: o Brasil vence o grupo E depois elimina o México (oitavas), a Bélgica (quartas), a Espanha (semifinal) e também chega na final.

Nesse memorável Brasil x Portugal, é evidente que o vencedor será...

[por problemas técnicos não foi possível imprimir o final da coluna; as nossas desculpas ao leitor]

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