Folha de S.Paulo

Entre o divã e o hospício

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

O Brasil vai à Copa do Mundo da Rússia como quem se deita no divã. Que o país anda ruim da cabeça —e da alma— já está claro há algum tempo, mas o 21º torneio mundial de seleções promete levar nossa maluquice a um ponto crítico.

Poucas vezes chegamos à Copa com uma equipe tão bem preparada, tão pronta a carregar com garbo a responsabi­lidade de favorita que a seleção pentacampe­ã carregaria de qualquer jeito, mesmo depois do 7 a 1 e ainda que fosse treinada por um Dunga da vida.

Ao mesmo tempo, nunca tantos de nós fomos tão hostis, rabugentos, inapetente­s ou no mínimo cautelosos —pelo menos por ora— diante da lendária amarelinha. “Isso nunca nos aconteceu antes”, poderiam dizer incontávei­s anti-Pachecos, caso estivessem envergonha­dos por negar fogo. Não estão: torcer contra é motivo de orgulho.

Ah, porque a camisa amarela virou “uniforme de fascista”. Porque Neymar é mimado e tem falhas de caráter. Porque na CBF e na Fifa só dá corrupto. Porque os jogadores são milionário­s expatriado­s que não representa­m o país —por aí vai.

Claro que todo mundo tem o direito de alimentar o bode que quiser em seu quintal. Parece inegável que o declínio do nosso velho ufanismo babão, que vem sendo observado há algumas Copas, é sintoma saudável do amadurecim­ento de um povo que deixou de encarar uma competição esportiva como teste binário —glória ou cadafalso— do seu valor. Ruas decoradas só fazem falta a donos de armarinho.

O que talvez nos faça falta a todos é a lucidez de reconhecer que o futebol —o esporte mais popular do planeta e um idioma realmente universal— é mais do que a soma dos interesses comerciais e políticos que o cercam.

Por décadas, o Brasil construiu nele uma marca mundial de excelência e fez disso um esteio de autoestima e do próprio sentimento (a princípio precário, como em qualquer sociedade pós-colonial) de nacionalid­ade.

Retocar essa mitologia à luz de um novo tempo é boa ideia, mas o futebol brasileiro não será chutado para escanteio sem danos à nossa sanidade coletiva.

O mau humor está no ar e não faltam razões para isso, mas a seleção treinada por Tite é das poucas coisas realizadas com talento, profission­alismo e competênci­a nesta terra em muito tempo. Se formos incapazes de nos alegrar com ela, talvez seja melhor trocar o divã pelo hospício.

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