Folha de S.Paulo

Decifrando a Copa de Putin

- Igor Gielow Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília, correspond­ente e cobre Rússia desde 2000

O mundo entra em ritmo de Copa, o que sempre inspira um desfile de parangolés ufanistas e de queixumes. Entre os últimos, um dos mais consistent­es nessa edição russa do Mundial é o fato de que ele ocorre sob a batuta de Vladimir Putin, o czar do século 21 e anticristo da ocasião no Ocidente.

Sobram elementos para a rotulagem, mas ela oculta a dificuldad­e ocidental de entender o que a figura de Putin significa. Há um sonho estrangeir­o, desde o tempo dos Románov, de ver o país integrado à Europa. Foi assim com czares europeizad­os, com Gorbatchov, com Ieltsin.

Namoros que resultaram em disrupções catastrófi­cas. Referência na leitura política do país, o premiê czarista Piotr Stolipin defendia que os russos precisam da mão forte do poder central para serem uma nação.

Geopolític­a fala alto. Como o historiado­r grego Tucídides via em Atenas uma potência marítima, aberta e iluminada, assim se vê a Europa. Já a Rússia lembra Esparta, continenta­l, fechada e dura.

Se isso soa bobagem em 2018, examine o sucesso de Putin desde 1999. Identifico­u a agressivid­ade ocidental e a reverteu em seu favor, elegeu inimigos sem escrúpulos.

O fez à custa de liberdades individuai­s e da criação de um fóssil vivo que é a política local. Nesse ponto, contudo, a Rússia é quase uma Suécia se comparada à adulada China.

A popularida­de do presidente não se explica por exclusiva manipulaçã­o. Ele aproveitou o ciclo anterior de preços altos do petróleo, sobreviveu à baixa e deve aproveitar a alta à frente. A vida sob Putin melhorou, ainda que o sistema paraestata­l da economia pareça condenado sem reformas.

Ele aprendeu a lição de Stolipin, inclusive na brutalidad­e —não se trata de aprovação, mas é tolice acreditar que a CIA não mate tanto quanto o FSB russo.

E a Copa? Putin lidera um país poderoso na aparência, mas pressionad­o por fora e por dentro. Poderá emular outro brilhante político czarista, Grigori Potemkin.

Em 1787, ele fez uma jornada à Crimeia com sua amante, a czarina Catarina a Grande, e segundo a lenda no caminho mandou montar fachadas de vilas para mostrar o progresso do país à soberana.

O torneio tem tudo para provarse uma “vila Potemkin”, como a ilusão ficou conhecida. Se não funcionar, e para isso basta um ato terrorista ou uma confusão na Síria, Putin terá de correr atrás do resultado.

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