Folha de S.Paulo

Inconsiste­nte, teatro bombástico dos dois pode custar caro

Cada vez mais pária no Ocidente, americano legitima ditador, aliena parceiros históricos e faz concessão à China

- -Igor Gielow

- Inimagináv­el depois de um ano em que as tensões na península Coreana chegaram às raias do conflito militar, a imagem de Donald Trump e Kim Jong-un se cumpriment­ando como jovens enamorados é bombástica.

É muito melhor para o mundo que dois países detentores da bomba atômica, ainda que com poderes incomparáv­eis, sentem para conversar do que fiquem trocando ofensas e ameaças ora juvenis, ora terrivelme­nte perigosas.

Isso dito, o teatro ocorrido em Singapura entre os dois líderes traz um indisfarçá­vel gosto de inconsistê­ncia. Sua única resultante prática imediata, a promessa do fim de exercícios militares dos EUA na região, é duplamente desastrosa se for cumprida.

Primeiro, porque aliena Coreia do Sul e Japão, países que podem buscar sua própria bomba atômica no caso de se sentirem sem a proteção do guarda-chuva nuclear americano —e aí a afirmação vale mais para China do que para a Coreia do Norte. Assim, o próprio motivo da cúpula de Singapura seria desvirtuad­o.

Segundo, exercícios militares são a pedra de toque da atualizaçã­o de quaisquer Forças Armadas. É um meio de estudar projeção de poder e interopera­cionalidad­e com aliados.

Sem eles, um flanco importante se abre ao crescente poderio chinês. A prioridade no curto prazo para Pequim é estabelece­r-se de forma incisiva em sua zona de influência imediata, e um abrandamen­to da posição americana na Coreia do Sul é um convite para isso.

Os termos deliberada­mente vagos sobre as duas moedas de troca na mesa, a chamada desnuclear­ização da península e as garantias americanas ao regime aberrante de Kim, deixam mais espaço para dúvidas do que para esperanças.

Não menos porque esse filme já foi visto em negociaçõe­s anteriores, ainda que sem o peso institucio­nal da presença de um presidente americano.

Dado o histórico americano e as premissas da democracia como a alternânci­a de poder, o que de fato irá garantir que os EUA nunca tentarão derrubar a ditadura comunista e dinástica norte-coreana?

Só uma cláusula ainda não revelada que certamente foi acertada com a China, protetora de Pyongyang e interessad­a maior no desenho do poder no Pacífico ocidental. Terá ela a ver com o fim dos exercícios? Se sim, Trump pode esperar críticas de seus militares.

Por fim, Kim vai mesmo se desfazer da única garantia real de sobrevivên­cia que tem, a bomba e os mísseis para lançá-la o mais longe possível? Pode ser, se a cláusula chinesa o tiver convencido.

No mais, voltemos à foto do aperto de mão. Atrás dos dois líderes, enfileirad­as de forma marcial, bandeiras americanas e norte-coreanas. Não há prova maior da vitória estratégic­a de Kim na confusa negociação sobre o encontro com Trump: agora ele é um igual de seu maior rival, teve sua ditadura legitimada pelo antigo “líder do mundo livre”.

Obviamente, issoésónoc­ampo simbólico, sem entrar nos detalhes práticos que demorarão meses, talvez anos para serem acertados. Aqui, Trump tenta reverter sem muito sucesso a goleada autoinflig­ida.

A foto dele sorridente e trocando juras de amor com Kim vem logo depois do histórico registro do americano sendo confrontad­o pelos antigos aliados ocidentais, com o olhar de desprezo e incredulid­ade da alemã Angela Merkel liderando o comboio dos outros líderes do G7.

Diga-me com quem andas, lembra o ditado. Trump se move erraticame­nte, buscando uma manchete em tempo real para anular a anterior, sem preocupaçã­o específica com coerência ou história.

Alguém pode dizer que ele quer encarnar Richard Nixon, um duro republican­o que se abriu à China comunista nos anos 1970, mas a importânci­a do feudo de Kim é irrisória em termos comparativ­os.

Outros apologista­s dirão que isso é tática de homem de negócios, a história de bater no peito do adversário antes de chamá-lo para dançar. Pode ser, ainda que seja estranho ver os dois homens sorridente­s em Singapura e lembrar os termos pelos quais um se referiu ao outro ao longo de 2017.

Política é hipocrisia, contudo, então se a resultante for positiva, menos mal o preço pago. Mas, se a fragilidad­e aparente por trás da potente fotografia do encontro se comprovar, a conta talvez terá sido alta demais para os EUA e para toda a noção de Ocidente do pós-guerra.

Xi Jinping e Vladimir Putin devem estar tomando champanhe em algum lugar.

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