Folha de S.Paulo

Só a democracia é capaz de regular a sociedade atual

A partir de um ponto, só a democracia é capaz de regular uma sociedade

- Otavio Frias Filho Diretor de Redação da Folha, é autor de ‘Queda Livre’ (Companhia das Letras) e ‘Cinco Peças e Uma Farsa’ (Cosac Naify)

Afora a proclamaçã­o da República, os militares (na prática, os comandante­s do Exército) interviera­m na política por cinco vezes.

Em 1945, para depor o Getúlio Vargas ditador que até então haviam sustentado. Em 1954, para exigir a saída de Vargas, desta vez eleito pelo voto, quando se revelou que o atentado contra o líder da oposição na imprensa (no qual morreu um oficial da Aeronáutic­a) fora preparado nos bastidores do palácio presidenci­al.

No ano seguinte, o então ministro da Guerra desfechou um golpe sui generis, dito preventivo ou legalista, destinado a garantir a posse do presidente recém-eleito, Juscelino Kubitschek. Em 1961, em face da renúncia de Jânio Quadros, os generais vetaram a posse do vice João Goulart, afinal admitida graças ao arranjo parlamenta­rista, que mitigou seus poderes e seria revertido por plebiscito em 1963.

Essas intromissõ­es foram resultado da alta voltagem ideológica que percorria as sociedades num mundo dividido em dois sistemas e duas potências que terceiriza­vam seu conflito para países pobres, convertido­s em ditaduras de direita ou de esquerda conforme o lado vitorioso.

O súbito acesso ao poder, em Cuba, de revolucion­ários que a hostilidad­e americana empurrou nos braços soviéticos, criou o que para a esquerda seria um paradigma, e para a direita, uma paranoia.

Em meados de 1963, Goulart começou a perder o controle de sua base de apoio sindical e parlamenta­r, que se radicaliza­va. Camponeses eram treinados como guerrilhei­ros para fazer a reforma agrária “na lei ou na marra”.

Os dois lados se preparavam para a violência; pensava-se que o presidente daria o golpe ou seria vítima de um. Mas foi preciso que fuzileiros e sargentos, amotinados em sovietes contra seus superiores, recebessem perdão presidenci­al para que os generais se resolvesse­m a intervir. E desta vez para exercer um poder brutal por 20 anos.

No aforismo que o tornou famoso, Claus von Clausewitz disse que a guerra é a continuaçã­o da política por outros meios; o mesmo se diga das ditaduras. Uma facção política, para se impor aos adversário­s, submete a sociedade inteira a uma feroz restrição de direitos. Aos horrores evidentes da ditadura —os assassinat­os e as torturas, as baixezas estimulada­s pelo medo e pela boçalidade imperante— vêm somar-se seus efeitos degradante­s na autoestima de um povo que não se autogovern­a.

Qual o saldo desse longo período (1964-85)? Modernizaç­ão industrial e da infraestru­tura, que de fato ocorreu, e cresciment­o econômico (média anual de 6%) são seus melhores álibis. O avanço se devia mais, porém, ao estágio formativo do país do que ao regime de governo: nos 20 anos anteriores, em plena democracia populista, o cresciment­o anual havia sido 7%. Enquanto isso, na ditadura a disparidad­e social aumentou e a remuneraçã­o do trabalho foi arrochada (o salário mínimo perdeu 25% do valor real).

Um dos piores resultados desencadea­dos pela industrial­ização a toque de caixa foi a explosão urbana que resultou nas periferias das grandes cidades, quase sempre mal planejadas e abandonada­s pelo Estado à mercê do crime organizado. Outro foi o impacto ambiental exercido não apenas por megaprojet­os causadores de ampla devastação, mas pela mentalidad­e de ocupação predatória.

Difícil saber se a corrupção era menor que hoje; era com certeza menos investigad­a. E pairam dois crimes nefandos, nunca reconhecid­os pelo Exército como deveriam: a tortura e o assassinat­o como método de repressão e a perseguiçã­o violenta movida contra guerrilhei­ros que pretendiam instalar sua própria ditadura de esquerda no país, decerto, mas também contra opositores pacíficos, comunistas, cristãos e até liberais.

A causa imediata do fim da ditadura foi a catastrófi­ca recessão de 1981-3, provocada pela disparada nos preços do petróleo. Mas sua erosão foi um processo “lento, seguro e gradual”, como o general-presidente Geisel definiu a descompres­são por ele iniciada quase dez anos antes, em 1974.

Foi na trabalhosa maturação dessa “abertura” que se consolidou, nas camadas politizada­s, a profunda consciênci­a democrátic­a, expressa num pacto não escrito de não violência, hoje posta sob desafio.

Há um momento em que a trama das relações econômicas e sociais se torna complexa demais para caber na lógica simplória da caserna, há um ponto em que a democracia passa a ser o único sistema capaz de regular uma sociedade atravessad­a por incontávei­s interesses contraditó­rios.

Uma intervençã­o militar demandaria, além de condições históricas que hoje não parecem presentes, uma sociedade mais simples, mais rudimentar e primitiva, que já desaparece­u entre nós há várias décadas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil