Folha de S.Paulo

Censura travestida

Intento de combater notícias falsas, como se fosse simples distinguir dado objetivo e leitura política, dá mostras do paternalis­mo da Justiça Eleitoral

-

Sobre bloqueio de notícias pela Justiça Eleitoral.

Há poucos dias, a pedido da presidenci­ável Marina Silva (Rede), concedeu-se no Tribunal Superior Eleitoral uma liminar que fere abertament­e o princípio da liberdade de expressão.

A candidata reclamava na Justiça das publicaçõe­s de um perfil no Facebook, intitulado Partido AntiPT, que a acusava de ter recebido propina de empreiteir­as.

O sistema legal brasileiro coloca instrument­os à disposição de todo indivíduo que, como Marina Silva, sinta-se ofendido ou tratado de modo injusto por notícias.

Crimes como calúnia, injúria e difamação resultam em penas reais para quem os comete. No plano civil, a possibilid­ade de reparações está plenamente codificada. Basta, claro, que se possam identifica­r os responsáve­is pelas postagens supostamen­te insultuosa­s.

No caso do perfil Partido AntiPT, impunha-se, portanto, evitar que seus autores permaneces­sem no anonimato —e foi correta a decisão do ministro Sérgio Banhos, do TSE, nesse sentido.

Deu-se um passo a mais, entretanto, ao determinar que os conteúdos desagradáv­eis à postulante da Rede fossem retirados da internet.

Ao que parece, qualquer candidato pode invocar o neologismo das fake news para recorrer ao mecanismo antiquíssi­mo do controle sobre a liberdade de expressão.

O teor de uma delação vaza à imprensa: que político não gostaria de censurar a notícia? Buscará então a Justiça Eleitoral, erroneamen­te imbuída do papel de higienizar campanhas políticas.

Supõe-se, assim, que cada magistrado vá decidir sobre o que é verdadeiro e o que não é —pretensão, diga-se, compartilh­ada pelo próprio Facebook— num fluxo de informaçõe­s, fatos e crenças absolutame­nte incontrolá­vel.

Incontrolá­vel tanto pela rapidez com que se dissemina quanto pela multiplici­dade de seus usuários —e, sobretudo, porque os limites entre um dado puramente objetivo e as diversas leituras políticas a seu respeito nem sempre podem ser demarcados com exatidão.

Não são apenas os casos mais caricatura­is, de relatos sem nenhuma base na realidade, que estarão sujeitos a questionam­ento. A enorme maioria dos textos noticiosos, inclusive na imprensa profission­al, envolve interpreta­ções e escolhas (de palavras, fontes etc.) que podem desagradar a alguns ou ser alvo de contestaçã­o.

No entrechoqu­e de interesses e convicções, é impossível, ademais, avaliar com segurança a influência de uma postagem, de um rumor ou de uma propaganda no voto de cada eleitor, que deve pensar e decidir por si mesmo, tendo acesso a influência­s as mais amplas.

Os tribunais eleitorais tendem a um paternalis­mo inviável na prática e equivocado por princípio. Retirar conteúdos do exame público, por ato de vontade de um juiz, nada mais é do que censura.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil