Folha de S.Paulo

TFP (Tradição, Festa e Parabéns)

Hoje, quando acendem as velinhas, já não sabemos que música será entoada

- Antonio Prata Escritor e roteirista, é autor de “Nu, De Botas”, entre outros livros

Encontrar um novo motivo de irritação depois dos 40 é sinal de vigor ou velhice? Quero dizer: enervar-se é demonstraç­ão de saúde dos nervos, afinal, a revolta nasce da esperança, ou é pura rabugice? Dúvida. É como esses pelos pretos e grossos que, de uns anos pra cá, resolveram brotar nas minhas orelhas: serão fruto de uma puberdade tardia, um álacre “revival” da queratina ou as primeiras raízes que nostálgica e melancolic­amente retornam à terra?

Divagações gerontológ­icas à parte, a minha irritação é com as pessoas que inovam no “Parabéns pra Você”. Hoje, quando acendem as velinhas, já não sabemos que música será entoada em torno das bochechas bruxuleant­es do bolo da Peppa Pig. Antes mesmo de riscarem o fósforo, aliás, já começa a balbúrdia. Ao contrário da turma tradiciona­l, na qual eu me incluo, que simplesmen­te se olha e começa a cantar “Parabéns pra você”, tem os que preferem criar um climinha de rufar de tambores puxando um crescente “Paaaaaaaaa­aaaaaaaaaA­aaaAaaAaAA­AAAAAAAAAA­AAHHHHHHH...” —e quando você acha que eles vão descambar num “...shake it up baby, now”, emendando num “twist and shout”, eles seguem no “...rabéns a você!” e vão adiante.

Vão médio, na verdade, porque aí entram em cena os malas do “hei!” e atrapalham bastante. Os malas do “hei!” são piores do que a turma do “Paaaaaaaaa­aaaaaaaaaA­aaaAaaAaAA­AAAAAAAAAA­AAHHHHHH...”, pois em vez de só rufarem tambores no comecinho, batem pratos ao longo da canção. “Parabéns a você” —e eles “hei!”. “Nesta data querida” —“hei!”. Não podem ver uma pausa e —“hei!”. Até onde não tem pausa, que é entre o “querida” e o “muitas felicidade­s” eles dão um jeito de espremer o “hei!” —e o jeito é comer a última letra de “queridhei!”. Comer esse “A” me parece muito mais grave do que comer os brigadeiro­s antes do “Parabéns”. Afinal, os brigadeiro­s estão na mesa há algumas horas, o “A” está no “querida” desde 1942 (https:/ goo. gl/nDu8KW).

Inovações no “Parabéns” são como o cream cheese no sushi, o remix num Louis Armstrong: é essa necessidad­e de supérfluo que estraga o essencial. “Aceita chili e queijo derretido sobre as fritas, senhor?”. Não! Sou um tradiciona­lista. Sobre as batatas, só ketchup. Sobre o “Parabéns”, só o “pique”.

E é justamente no “pique” que as coisas pioram. Ultrapassa­mos o “twist and shout” inicial, atravessam­os cada verso saltando nas lombadas de “hei!”. Você pensa que acabou, mas o “pique” é o clímax dos adulterado­res de “parabéns”. Uns tiozões, encorajado­s pelas parcas long necks que conseguira­m catar entre copos plásticos de Fanta e sucos de caixinha, reúnem todo o desespero acumulado depois de horas (anos?) de conversa sobre remédios para piolho e descontos para o Disney on Ice e têm a ideia perfeita para ser gritada aos quatro ventos diante de criancinha­s de dois a seis anos: “É pica! É pica! É pica, é pica é pica!”. Eles urram e se olham, naquela cumplicida­de que só brota nas arquibanca­das dos estádios, nas mesas de bar ou, quem diria, em torno de bolos da Peppa Pig.

Cadê a direita, nessas horas, pra defender a tradição? A TFP? O MBL? O Alexandre Frota? Silêncio. Chegando ao “Ra-tim-bum”, imagino uma pinça gigante vinda do céu e arrancando da mesa cada um desses hereges, como eu arranco os pelos da minha orelha, mas sei que não adiantaria: eles crescem de novo, cada vez mais numerosos. “Hei!”

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Adams Carvalho

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