Folha de S.Paulo

Como refazer um coração

Brasileiro­s criam técnica que pode permitir transplant­e sem rejeição do órgão

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

“Descelular­izado” parece neologismo para designar quem está sofrendo uma crise de abstinênci­a por falta de acesso ao smartphone, mas o termo, na verdade, é uma das palavrasch­ave para quem tenta contornar a escassez de órgãos para transplant­e no mundo.

E se fosse possível descelular­izar totalmente o coração de um doador —ou seja, retirar todas as células e todo o material genético original— , usar o “esqueleto” do órgão como base para células do próprio paciente que vai receber o transplant­e e, assim, concluir o processo tendo em mãos um coração novo em folha, pronto para ser transplant­ado sem riscos de rejeição?

Cinquenta anos depois dos primeiros transplant­es no Brasil e no mundo, vários laboratóri­os mundo afora têm corrido atrás desse novo objetivo. “É algo com um potencial enorme, que está se aproximand­o das aplicações em seres humanos”, afirma Rayssa Arruda Pereira, que faz doutorado em biotecnolo­gia na Ufes (Universida­de Federal do Espírito Santo).

A pesquisado­ra, seu orientador Breno Nogueira e outros colegas estão tentando contornar os obstáculos que ainda existem para que a técnica se torne viável, tanto para transplant­es de coração quanto para outros órgãos, como rim e baço.

O primeiro passo para isso é fazer com que sobre apenas a chamada matriz extracelul­ar do órgão original, ou seja, o conjunto de proteínas e outras moléculas que dão suporte às células, mais ou menos como os andaimes usados para construir um prédio. Quando esse processo é concluído, o que resta é uma estrutura translúcid­a, espécie de “fantasma” do coração que será transplant­ado.

Depois disso, é preciso obter células-tronco da pessoa que receberá o transplant­e. Tais células se caracteriz­am, de modo geral, pela capacidade de dar origem a diferentes tipos de tecido, mas algumas são mais maleáveis do que outras. As mais promissora­s, no longo prazo, são as reprograma­das geneticame­nte para voltar a um estado semelhante ao embrionári­o, mas ainda falta muito trabalho para comprovar a segurança e a eficácia delas.

Outras, com capacidade­s mais modestas, obtidas da medula óssea, talvez já sejam suficiente­s no caso do coração, segundo indicam os trabalhos da equipe da Ufes. O próprio contato de tais células com a matriz extracelul­ar poderia ser suficiente para direcionar sua especializ­ação, levando à recriação do órgão.

O problema, porém, é o que poderíamos chamar de controle de qualidade do órgão descelular­izado. Ainda que o exame visual indique que a matriz extracelul­ar já está totalmente “desnuda”, a prova dos nove tem de vir da análise de DNA: se ainda houver material genético do doador no órgão, problemas de rejeição podem continuar acontecend­o. E a análise genética, por demandar a retirada de uma amostra do arcabouço do órgão, pode acabar colocando sua funcionali­dade em risco.

Rayssa e seus colegas desenvolve­ram um método não invasivo para escapar desse dilema. Um sensor óptico usa o padrão de absorção de luz do coração descelular­izado para estimar se ele está apto para o transplant­e, sem sobras de células ou de DNA.

A tecnologia rendeu o registro de uma patente e foi premiada pela Swissnex, iniciativa público-privada da Suíça que incentiva a pesquisa e a inovação.

Outros colaborado­res do estudo são pesquisado­res do Instituto Federal do Espírito Santo e do Instituto de Matemática e Estatístic­a da USP. A empresa de tecnologia Qualcomm também apoia a pesquisa.

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