Folha de S.Paulo

Kierkegaar­d e o Candy Crush

Todas as manias que não tenho são bobas, e as que tenho são encantador­as

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, autor de ‘A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar’ e membro do coletivo português Gato Fedorento

Tenho reparado que todas as manias que eu não tenho são meio bobas, e todas as que eu tenho são idiossincr­asias encantador­as. Coincidênc­ias felizes.

De acordo com este critério absolutame­nte infalível e comprovado, jogar Candy Crush no celular é meio bobo. Eu não jogo, mas tenho observado a profunda decadência moral de quem joga.

O desespero, a angústia, a dependênci­a, os lares destruídos. A crueldade do Facebook, reproduzin­do a maldosa pressão dos pares: “O seu amigo já está no nível 541. Você está preso no 257 há dez dias.” O próprio jogo, insinuando-se junto do jogador com a mesma estratégia dos traficante­s: “Há muito tempo que você não joga... Quer uma vida, só para experiment­ar?”

É um jogo e uma inquietaçã­o existencia­l: quer uma vida? Para obter vidas, o jogador tem de passar algum tempo sem jogar (e assim recupera a sua própria vida, curiosamen­te —o que é um aborrecime­nto). Alguns não aguentam e adiantam uns dias no relógio do celular. Tenho amigos que estão a viver em 2157, no século 22.

É preciso fazer uma distinção importante: os vilões das fitas de James Bond são erradament­e chamados de Gênios do Mal. Goldfinger, por exemplo, deseja roubar a reserva de ouro dos Estados Unidos. Francisco Scaramanga quer controlar e vender a energia solar.

Ora, não é preciso ser um gênio para conceber esses crimes, nem para perceber que são muito lucrativos. Eles não são Gênios do Mal; serão, no máximo, Pessoas Medianamen­te Inteligent­es do Mal.

Para mim, um verdadeiro Gênio do Mal, como todos os gênios, vê o que mais ninguém é capaz de ver.

Ele pensa, por exemplo: “Embora ninguém o tenha percebido ainda, o ser humano possui uma vontade indômita de alinhar guloseimas do mesmo tipo em filinhas, para as fazer estourar e provocar o aparecimen­to de mais guloseimas. Vou então explorar essa estranha aspiração humana e fazer com que as pessoas não voltem a ter uma conversa normal com alguém sempre que estiverem a organizar doces nos seus celulares, que é a sua verdadeira prioridade na vida.”

Este, sim, é um Gênio do Mal. Uma personagem para Wagner Moura interpreta­r.

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Luiza Pannunzio

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