Folha de S.Paulo

Umsócorpo

- Por Pedro Mairal Romancista, poeta e contista argentino Tradução Heloisa Jahn Editora e tradutora, já verteu ao português livros de Borges e Ricardo Piglia Ilustração Marcos Garuti Artista visual

Você disse que eu falei dormindo. É a primeira coisa de que me lembro desta manhã. O despertado­r tocou às seis. Maiko tinha vindo para a nossa cama. Você me abraçou e a conversa foi cochichada, pertinho do ouvido, para não acordá-lo, mas acho que também para evitar falarmos de frente com o hálito noturno. — Faço um café?

— Não, amor. Continuem dormindo.

— Você falou dormindo. Me assustou.

— O que eu falei?

— O mesmo da outra vez: “guerra”. — Que estranho.

Tomei banho, me vesti. Dei em vocês meu beijo de Judas. Um para você, outro para Maiko.

— Boa viagem – você disse. —Agentesevê­ànoite.

— Vá com cuidado.

Peguei o elevador até o subsolo da garagem e saí. Ainda estava escuro. Dirigi sem pôr música. Desci pela Billinghur­st, virei na Libertador. Já havia trânsito, principalm­ente por causa dos caminhões perto do porto. No estacionam­ento da Buquebus, um guarda me disse que não havia mais lugar. Tive que sair outra vez e deixar o carro num estacionam­ento do outro lado da avenida. A ideia não me agradou, porque à noite, quando eu voltasse com os dólares, ia ser obrigado a andar aquelas duas quadras escuras pela rua deserta.

Não havia fila no balcão do checkin. Mostrei o documento.

— O expresso para Colonia? – perguntou o funcionári­o.

— Isso. Depois o ônibus para Montevidéu.

— Volta no mesmo dia, pelo ferry direto?

— Isso.

— Certo… – disse ele, olhando para mim um pouco mais que o normal.

Imprimiu a passagem, que me entregou com um sorriso gélido. Evitei olhá-lo nos olhos. Me perturbou. Por que olhar para mim daquele jeito? Será que estavam separando e anotando numa lista as pessoas que iam e voltavam no mesmo dia?

Subi a escada rolante para o controle da alfândega. Passei a mochila pelo raio X, avancei pelo labirinto de cordas vazio. “Siga em frente”, me disseram. O funcionári­o da Imigração conferiu o documento, a passagem. “Muito bem, Lucas, por favor, fique na frente da câmera. Perfeito. Comprima o polegar direito... Obrigado.” Recolhi a passagem, o documento e entrei na sala de embarque.

As pessoas formavam uma longa fila. Pela janela, vi o ferry nas últimas manobras de atracação. Paguei o café e o croissant mais caros do mundo (um croissant grudento, um café radioativo) e devorei num minuto. Fui para o fim da fila e ouvi ao redor alguns casais brasileiro­s, alguns franceses e um ou outro sotaque do interior, do norte, talvez de Salta. Havia outros homens sozinhos, como eu; talvez também fossem passar o dia no Uruguai, a trabalho ou para buscar dinheiro.

A fila foi avançando, andei pelos corredores acarpetado­s e entrei no ferry. O salão grande, com todos aqueles assentos, parecia um cinema. Achei um lugar vazio perto da janela, sentei e te enviei a mensagem: “A bordo. Te amo”. Olhei pela janela. O dia clareava. O quebra-mar se perdia numa neblina amarela.

Aí escrevi o e-mail que você encontrou mais tarde:

“Guerra, estou a caminho. Você pode às duas?”

Eu nunca deixava meu e-mail aberto. Nunca mesmo. Era muito muito cuidadoso com isso. Me tranquiliz­ava saber que havia uma parte do meu cérebro que eu não dividia com você. Sentia necessidad­e do meu cone de sombra, da minha tranca na porta, da minha intimidade, nem que fosse só para ficar em silêncio. Essa coisa siamesa dos casais sempre me aterroriza: mesma opinião, mesmo prato, porre em dupla, como se os dois tivessem a mesma circulação sanguínea. Deve haver um resultado químico de nivelação, depois de anos mantendo essa coreografi­a constante. Mesmo lugar, mesmas rotinas, mesma alimentaçã­o, vida sexual simultânea, estímulos idênticos... temperatur­a, nível econômico, temores, incentivos, passeios, projetos – tudo coincident­e. Que monstro bicéfalo vai se criando assim? Você fica simétrico ao outro, os metabolism­os se sincroniza­m, é um funcioname­nto espelhado; um ser binário com um único desejo. E o filho chega para envolver esse abraço e soldá-los com um laço eterno. A ideia em si é pura asfixia.

Digo “a ideia” porque tenho a impressão de que nós dois lutamos contra isso, mesmo levados pela inércia. Meu corpo já não terminava na ponta dos meus dedos; continuava no seu. Um só corpo. Catalina deixou de existir, Lucas deixou de existir. O hermetismo furou, criou fissuras: eu falo dormindo, você lê meus e-mails… Em algumas regiões do Caribe os casais dão ao filho um nome composto pelos nomes dos pais. Se tivéssemos tido uma filha, ela poderia se chamar Lucalina, por exemplo, e Maiko, Catalucas. Esse o nome do monstro que você e eu formávamos quando nos derramávam­os um no outro. Não gosto dessa ideia de amor. Preciso de um canto privado. Por que você foi olhar meus e-mails? Estava procurando alguma coisa para começar o confronto, para finalmente desfiar suas verdades? Eu nunca revistei seus e-mails. Sei muito bem que você deixava sua caixa de entrada sempre aberta, e por isso eu ficava curioso, mas nunca me passou pela cabeça ler suas coisas.

O ferry zarpou. O cais foi ficando para trás. Dava para ver um pedaço de litoral, mal se adivinhava o perfil dos edifícios. Senti um imenso alívio. Partir. Mesmo que por um período curto. Sair do país. O alto-falante transmitia as normas de segurança em espanhol, em português e em inglês. Um salva-vidas embaixo de cada assento. E pouco depois: “Informamos aos senhores passageiro­s que o free shop já está aberto”. Que gênio o inventor dessa palavra, free shop. Quanto maiores as restrições impostas ao comércio, mais os argentinos gostam dessa palavra. Uma ideia estranha de liberdade.

Lá estava eu, viajando para contraband­ear meu próprio dinheiro. Meu adiantamen­to sobre os direitos autorais. A grana que ia resolver tudo. Até minha depressão, meu isolamento e o grande “não” da dureza. Não posso porque não tenho dinheiro, não saio, não mando a carta, não imprimo o formulário, não vou me informar na agência, não solto os cachorros, não pinto as cadeiras, não conserto a infiltraçã­o, não mando o currículo – por quê? Porque não tenho dinheiro.

Abri a conta em Montevidéu em abril. Só agora, em setembro, chegavam os adiantamen­tos da Espanha e da Colômbia, de dois contratos de livros assinados meses antes. Se os dólares fossem transferid­os para a Argentina, o banco os transforma­ria em pesos pelo câmbio oficial e eu teria de pagar imposto sobre os rendimento­s. Se fosse buscá-los no Uruguai e os trouxesse em dinheiro vivo, poderia trocá-los em Buenos Aires no câmbio negro e ficaria com mais do que o dobro. Valia a pena a viagem, inclusive o risco de que na volta encontrass­em os dólares quando eu passasse pela alfândega. Porque eu entraria no país

 com mais dólares que o permitido.

 ??  ?? [SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página integra “A Uruguaia”, espécie de epopeia tragicômic­a sobre a busca pela felicidade, que tem lançamento pela Todavia em julho. O livro rendeu o prêmio Tigre Juan em 2017 ao autor argentino, que ganhou notoriedad­e...
[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página integra “A Uruguaia”, espécie de epopeia tragicômic­a sobre a busca pela felicidade, que tem lançamento pela Todavia em julho. O livro rendeu o prêmio Tigre Juan em 2017 ao autor argentino, que ganhou notoriedad­e...

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