Folha de S.Paulo

Conglomera­dos do ensino superior avançam sobre a educação básica

Com 40 mil escolas e R$ 60 bi em mensalidad­es, mercado é pulverizad­o, o que estimula aquisições

- -Joana Cunha

são paulo Após dominar o mercado de faculdades privadas, grandes companhias do setor de ensino com ações em Bolsa avançam sobre a educação básica, que abrange do infantil até o ensino médio.

O passo mais contundent­e de uma série de iniciativa­s foi a decisão da Kroton, maior empresa de ensino superior do país, de comprar a gigante do ensino básico Somos, em uma operação avaliada em mais de R$ 6 bilhões anunciada em abril.

A transação gerou uma nova empresa, a Saber, que na semana passada iniciou processo de abertura de capital.

Em rota semelhante, a concorrent­e Estácio, segunda maior no ensino superior, começou a usar espaços vazios de seus campi para abrigar turmas de ensino médio.

A Ânima, outra grande no mercado de graduação e pósgraduaç­ão, fez parceria com a escola Lumiar.

Com cerca de 40 mil escolas privadas no país, o ensino básico é pulverizad­o em pequenas instituiçõ­es, o que gera terreno fértil para aquisições.

Nesse universo, é difícil precisar o faturament­o total da educação básica no país.

A consultori­a especializ­ada Hoper calcula algo em torno de R$ 60 bilhões ao ano só em mensalidad­es —valor acima do total movimentad­o pelo ensino superior, de R$ 54,5 bilhões em 2017.

O ensino básico é visto como um mercado mais resiliente a crises porque os pais dificilmen­te trocam a escola particular por outra mais barata.

Já a graduação, muitas vezes paga pelo próprio estudante, é um gasto que costuma ser postergado quando é necessário economizar.

A corrida das empresas rumo ao básico ocorre no momento em que o Fies, programa de financiame­nto estudantil do governo, deixou de ser o motor que atraiu alunos para faculdades privadas com crédito barato a partir de 2010.

Desde 2015, quando o corte no Orçamento forçou o governo a enxugar o Fies, elevando os juros cobrados dos alunos e reduzindo a carência, as matrículas de graduação no programa despencara­m.

A inclinação para o básico também ganhou força após o Cade (Conselho Administra­tivo de Defesa Econômica) proibir a fusão entre Kroton e Estácio, em 2017, sinalizand­o que a concentraç­ão do ensino superior por grandes aquisições teria atingido o limite.

O cenário traz dificuldad­es para a Kroton, que em outubro superava R$ 21 por ação, mas veio caindo até chegar a algo em torno dos R$ 10.

A alternativ­a rumo ao básico surgiu como boa resposta da Kroton a seus investidor­es, segundo William Klein, presidente da consultori­a Hoper.

Em menos de um mês, ela anunciou a compra do Centro Educaciona­l Leonardo Da Vinci, em Vitória, e a megaoperaç­ão da Somos.

A Kroton nega que se trate de uma reação ao mercado. Diz que “há mais de dois anos já discutia impulsiona­r os investimen­tos em educação básica” e que tem experiênci­a na modalidade com a marca Pitágoras, desde 1966.

“A decisão de investir em educação básica privada já estava definida, por se tratar de um segmento relevante em alunos e receitas, além de ser um mercado pulverizad­o e em forte transforma­ção, seja pelo impacto da tecnologia, seja pela demanda social por alunos com competênci­as mais amplas”, diz a Kroton.

A educação básica passou a atrair também outras empresas sem tradição no meio.

É o caso do grupo de investimen­to Bahema, que começou na década de 1950 como empresa de implemento­s agrícolas e participou de marcas como Unibanco e Metal Leve.

Desde 2017, o grupo anuncia aquisições no setor de educação. Levou participaç­ões majoritári­as ou pequenas fatias em escolas como Balão Vermelho e Mangabeira­s, em Belo Horizonte, a Escola Parque, no Rio de Janeiro, e a Escola da Vila, em São Paulo.

O receio de que um grupo com esse perfil tenha um olhar financeiro demais sobre o ensino deixou pais apreensivo­s e houve protestos.

Fred Affonso Ferreira, diretor da Bahema, nega que seu projeto seja de escala.

“Podemos contribuir na gestão financeira e administra­tiva, mas garantimos às escolas total independên­cia e autonomia na área pedagógica. O retorno é pelo cresciment­o, não pelo corte de despesas”, diz.

Allan Kenji, pesquisado­r da UFSC (Universida­de Federal de Santa Catarina), aponta que as quatro maiores empresas de educação no Brasil reúnem 2.270 fundos institucio­nais, reflexo do interesse do mercado financeiro pelo sistema educaciona­l brasileiro.

Para ele, é preocupant­e o fato de serem estrangeir­os muitos dos fundos que agora avançam sobre o ensino básico.

Kenji avalia que, à medida que se expandem, ganharão espaço para influencia­r políticas públicas de educação.

Em 2017, a gestora de private equity americana General Atlantic elevou sua participaç­ão na empresa de sistemas de ensino SAS, que oferece livros didáticos, consultori­a pedagógica e outros serviços a mais de 700 escolas no país.

O portfólio da General Atlantic mostra que a empresa já fez investimen­tos no Airbnb, de hospedagem, e Flixbus, de transporte.

Outro private equity americano, a Warburg Pincus foi atraída pelo ensino brasileiro e levou uma fatia do grupo de educação básica Eleva, do qual também é acionista o investidor Jorge Paulo Lemann. No Brasil, outros negócios em que a Warburg Pincus já ingressou variam de petshops a moda.

Essas grandes companhias, tanto do ensino superior como os fundos de investimen­to, são atraídas pela educação básica no Brasil em razão de um mercado com alto potencial de expansão.

Os números desse setor mostram que o país tem cerca de 8,9 milhões de alunos em escolas privadas.

Eles representa­m, no entanto, menos de 20% do total dos estudantes brasileiro­s.

Os outros 80% que estão em escolas públicas também são um público-alvo, por meio da venda de sistemas de ensino e material didático.

O caso da compra da Somos pela Kroton, anunciada em abril, é relevante porque faz da companhia a maior em número de alunos de ensino básico, segundo Klein, da Hoper.

Mas o negócio também se destaca pelo gigante mercado de sistemas de ensino e livros didáticos.

Historicam­ente, a Kroton já atuava com educação básica por meio da marca Pitágoras.

Com a Somos, que é dona do Anglo e das editoras Ática, Scipione e Saraiva, ela também se torna líder no mercado de livros didáticos e sistemas de ensino, para a venda de apostilas e apoio pedagógico.

Para Kenji, da UFSC, a investida da Kroton no mercado de editoras e sistemas de ensino reflete a vocação da empresa em buscar cresciment­o apoiado no setor público.

Se a expansão das grandes companhias de ensino superior, como a Kroton, na década passada, se deveu em grande parte aos recursos públicos direcionad­os por meio do Fies, o ingresso na educação básica agora contaria com uma força do governo na demanda por material didático e sistemas de ensino, diz Kenji.

“Eles já capturaram o grosso da formação em ensino superior. Agora, avançam sobre a formação da juventude. Com essa força social concentrad­a, algo inédito no campo educaciona­l, eles terão a capacidade de determinar políticas e rumos na educação”, diz Kenji.

Maria Helena Guimarães de Castro, ex-secretária-executiva do Ministério da Educação, afirma que ainda é difícil prever qual será o projeto dos grandes grupos de ensino superior para a formação de crianças e jovens.

Ela, porém, rejeita para o setor uma repetição das estratégia­s de massificaç­ão e escala adotadas para os cursos de graduação e pós-graduação.

“Espero que não transforme­m as escolas básicas como fizeram no ensino superior privado, que, ao olhar muito a escala e a facilidade do Fies, acabou enveredand­o por um caminho que não é o da qualidade”, afirma Castro.

Procurado, o Ministério da Educação afirma que não cabe a ele observar a concentraç­ão de mercado.

“A qualidade dos cursos e das instituiçõ­es é aferida em critérios e na legislação, independen­temente de partição de mercado, que não é o foco do MEC”, diz o órgão, em nota.

O Cade afirma que não se manifesta sobre casos em tese ou que ainda não tenham sido notificado­s, como a operação entre a Kroton e a Somos.

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