Folha de S.Paulo

Uma aberração rara até para o Brasil

Drama que vem desde 2013 tem sintomas semelhante­s aos dos piores momentos da República

- Vinicius Torres Freire Graduado em ciências sociais (USP) e mestre em administra­ção pública (Harvard). Foi secretário de Redação e editor da Folha vinicius.torres@grupofolha.com.br

A desgraça dos últimos cinco anos tem sintomas das piores crises da República. É uma síndrome político-econômica grave até para os padrões aberrantes do país.

Não se trata apenas de dizer que o triênio 2014-2016 foi o da segunda pior recessão desde 1900. Pelo menos desde os anos 1950, quando há dados mais confiáveis, a economia não regredia tanto em relação ao resto do mundo.

Há mais. Depois de chegarmos ao fundo do vale recessivo de momentos críticos, em 1965, 1983 ou 1992, nos biênios subsequent­es o país voltaria a crescer (a taxas acumuladas de 5%, 9% e8%, respectiva­mente). Em 2017-2018, o cresciment­o da renda (PIB) per capita não passará de 1,5%, se tanto.

Ainda que as recuperaçõ­es dos outros colapsos fossem insustentá­veis e restritas aos mais remediados ou elites, ofereceram alívio transitóri­o, em especial político. Como atenuante, o país é hoje mais rico e conta com proteção social mais extensa e profunda, o que talvez limite o sofrimento social. Em comum com outros desastres, há crises política e econômica que se realimenta­m.

Nas trevas em torno de 1965, começavam mudanças constituci­onais e reformas econômicas impostas por meio de repressão social, cassação, exílio, tortura e morte.

O fundo do vale de 1983 resultou em outra mudança constituci­onal, o desmanche da ditadura.

O ano de 1992 foi do fracasso da primeira eleição presidenci­al da República nova e do fundo do poço da pobreza nacional pelo menos desde 1970. Mesmo assim, a deposição de Fernando Collor teve aspectos otimistas, a reafirmaçã­o da democracia e perspectiv­as abertas por partidos ainda novos, PSDB e PT, que reuniam elites mais civilizada­s.

Organizava-se então um novo sistema político, o que morreu nesta década, de podre e por desconexão social. Resiste apenas como zumbi.

Durante a paz relativa de 1995-2012, boa parte da ciência política brasileira dizia, quase se felicitand­o, que o sistema político era funcional.

Apesar da fragmentaç­ão crescente, aberrante, e da multiplica­ção de legendas negocistas, entre outras perversões, formavam-se maiorias parlamenta­res que garantiam governabil­idade; os partidos ofereciam opções ideológica­s vagamente nítidas para o eleitor comprar.

Mas, mesmo antes da explosão da Lava Jato (2014), era evidente o colapso da representa­ção, vide 2013. A tal funcionali­dade em parte era azeitada pelo saque de um Estado balofo e capturado por castas de interesse, nem sempre de modo criminoso.

Os partidos relevantes melhores, PSDB e PT, não apenas se desconecta­ram de suas bases no Brasil mais “moderno”. Apodrecera­m e envelhecer­am também.

No país novo, cresceu a relevância das bancadas BBB (bala, boi e Bíblia). Há multidões de precarizad­os ou trabalhado­res de serviços sem representa­ção organizada maior. De massas pobres do Brasil profundo ligadas de modo imediato a um líder personalis­ta. De jovens de pequena classe média e daí para baixo com mais anos de escola. Há a periferia niilista e o avanço evangélico etc.: isto é só uma enumeração caótica.

Há também uma sociedade ou vozes dominantes que querem mais do Estado e menos para o Estado. É um beco sem saída, um conflito distributi­vo paralisant­e, agravado por um sistema político fechado em sua cripta e pela incapacida­de social de furar esse bloqueio.

No impasse, cresce o apelo de soluções mágicas e desesperad­as. A autoritári­a inclusive.

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