Folha de S.Paulo

Vera Iaconelli

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Como vestir a camisa da seleção quando ela foi indevidame­nte usada?

Vera Iaconelli Psicanalis­ta, fala sobre relações, mudanças de costumes e novas famílias do século 21

Você ama seu time? Passa grande parte do tempo, depois do jogo, pensando nas piadas que fará com os colegas de trabalho, se tiver ganho, e pensando nas respostas que dará às piadas que farão com você, se tiver perdido? Então, é para você mesmo que eu quero fazer algumas perguntas.

Ao longo dos anos, fui me dando conta de que eu só gostava do futebol e abstraía os times. Lamentava, quando uma bela jogada não era finalizada, mesmo que fosse do time adversário. No final não tinha jeito, eu acabava torcendo pelo futebol e não pelos clubes. Como se o futebol pudesse realmente ser um espetáculo de esporte e aquela baboseira de “que vença o melhor” tivesse valor.

O meu jeito bizarro de torcer pelo futebol fez com que as torcidas se tornassem um ponto insuportáv­el do jogo para mim. Que alguém morra ou mate pelo jogo soa tão grotesco quanto guerra santa.

A pergunta que não quer calar: posso ser considerad­a torcedora de futebol, mesmo se eu não for fiel a um time?

Outra questão: se, ao longo dos anos, os times trocam técnico, treinador e quase todos ou todos os jogadores, não estaríamos naquela historinha da faca? Aquela, na qual você tem uma faca de estimação, cujo cabo ficou gasto. Você troca o cabo. Em seguida, a lâmina estraga. Você troca a lâmina. Para quem você estava torcendo mesmo?

Desculpe a insistênci­a, mas são questões cruciais de uma torcedora que se sente marginaliz­ada.

Agora é sério, mas é o inverso. O seu time ganha um campeonato super prestigiad­o, por exemplo, a Copa das Américas. Você joga na cara da galera, com todas as piadinhas do seu arsenal. Mas eis que esse mesmo time, na mesma época, fica lá atrás no Brasileirã­o. Isso faz algum sentido para alguém? Até eu sei que os times são poupados ou dão tudo, conforme a conveniênc­ia financeira, mas não fica difícil afirmar que o seu time é o melhor, diante dessa inconsistê­ncia de resultados?

Pergunta de ordem prática, no que tange à estética e à ética, não necessaria­mente nessa ordem. Como eu faço para usar a camisa da seleção e a bandeira nacional, com toda dignidade que elas merecem, abstraindo que uma ostenta o símbolo da CBF e que ambas foram usadas, indevidame­nte, em manifestaç­ões pela volta do regime militar e paneladas afins?

Por fim, mas não menos importante, o futebol não é maravilhos­o? Essa resposta eu sei.

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