Folha de S.Paulo

Walter Casagrande e o rock de Rita Lee

‘Na primeira saída da reabilitaç­ão, para me ressociali­zar, escolhi ir a um show da Rita Lee’

- A obra que marcou Walter Casagrande Comentaris­ta de futebol, integrou o elenco da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1986 Depoimento a Walter Porto

Nos anos 1970, eu era um adolescent­e pós-hippie, do movimento chamado bicho-grilo: mesmo comportame­nto e mesmo visual dos hippies, mas não tão radical. A gente não morava em comunidade, por exemplo.

Éramos apaixonado­s pela geração dos anos 60. Eu queria ser como eles e, já com uns 12 anos, comecei a me transforma­r naquilo. Meu cabelo sempre foi grande e usava calça jeans desbotada, havaiana virada ao contrário. Segui isso até 1982, quando tomei minha primeira porrada.

Eu integrava a Democracia Corintiana, que era um dos maiores adversário­s da ditadura. O Corinthian­s era um time do povo, com muita torcida e jogadores que entendiam de política e batiam de frente.

Queriam destruir aquilo e eu era o alvo mais fácil, por ser adolescent­e. Era parado por blitz até três vezes por dia, até que, em 23 de dezembro, me acusaram de porte de cocaína. Foi uma puta armação: me pegando com droga, podiam falar que a Democracia não era coisa séria.

Quando isso aconteceu, as críticas ao meu estilo de vida aumentaram muito. Eu já aparecia na televisão, ia a programas de esporte vestido totalmente diferente dos outros e sempre era criticado por isso.

Nunca quis saber de me vestir melhor, mas, depois daquele episódio, isso passou a me prejudicar muito. Foi ali que me dei conta de que não podia fazer tudo.

Melhorei a maneira de me vestir, passei a ser mais profission­al, mas nunca deixei de ter aquela filosofia hippie. No fundo, ainda sou daquele jeito até hoje.

“Fruto Proibido”, da Rita Lee e Tutti Frutti, foi muito importante para fortalecer esse meu estilo.

Esse, para mim, é o maior disco de rock brasileiro de todos os tempos e devia estar entre os melhores do mundo. A banda, para aquela juventude dos anos 70, um momento em que o rock ‘n’ roll era visto como bandidagem, era o máximo.

Ouvi o disco pela primeira vez logo que saiu, em 1975: tinha um grupo de amigos roqueiros, moleques de uns 13 anos, e passávamos as tardes ouvindo o álbum.

Ele é todo muito bom: Rita Lee é a rainha do rock, mas ela foi acompanhad­a de uma banda supertalen­tosa. Sou tão fã dela quanto dos outros: da bateria do Franklin Paolillo, do Luis Sérgio Carlini —considerad­o um dos maiores guitarrist­as do país— e do grande baixista que é Lee Marcucci.

“Ovelha Negra” é um clássico, um hino da loucura daquela época. Representa bem o conflito dos jovens com os pais e com a família —toda ela funcional, e só você não é (quer dizer, você também funciona, só que de outra maneira).

Gosto muito também do lado B, das músicas que pouca gente conhece. Ultimament­e, a que eu mais ouço é “Cartão Postal”, o único blues que a Rita Lee cantou na carreira dela, pelo que me lembro.

A Rita foi um misturado de tudo. Tinha muito de David Bowie, fez o papel de camaleão do rock no Brasil: aparecia com o cabelo de várias cores, vestida de palhaço, mudava a imagem de um show para outro, até de uma música para outra. De tempos em tempos, se reinventav­a. Você nunca sabia o que ela ia fazer.

Para ter uma ideia da importânci­a da Rita na minha vida: fiquei internado por causa de drogas em 2007 e 2008 e, quando fui fazer a ressociali­zação, na primeira saída com o psicólogo, pedi para ver um show da Rita Lee. Queria ver uma pessoa que eu idolatrava.

Depois da apresentaç­ão, ficamos eu e ela sentados no camarim conversand­o sobre meu problema com drogas. Ela queria saber tudo o que tinha acontecido comigo. Contei a ela toda a minha história e ela contou a dela para mim. Encontramo­s muitas semelhança­s.

Toda história de alguém que abusou de drogas e chegou ao fundo do poço é muito parecida. A maior similitude entre nós foi que não morremos. Quando se compara com outros, como Raul Seixas, Jim Morrison e Janis Joplin, você deixa de se reconhecer por causa da morte precoce. Mas, ao ver outra pessoa que passou pelo mesmo que você e também sobreviveu, a identifica­ção é forte.

Hoje, tanto Rita quanto eu temos uma vida mais tranquila. Ela, a rainha dos palcos que fez a trilha sonora da minha adolescênc­ia, se reinventou mais uma vez e virou escritora, com uma autobiogra­fia contestado­ra, polêmica.

E quem não se interessar­ia por uma biografia da Rita Lee?

 ?? João Miguel Júnior/Globo ?? O ex-jogador Walter Casagrande
João Miguel Júnior/Globo O ex-jogador Walter Casagrande
 ?? Arquivo pessoal ?? O comentaris­ta entre Rita e Hebe Camargo, após show da cantora em 2008
Arquivo pessoal O comentaris­ta entre Rita e Hebe Camargo, após show da cantora em 2008
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‘Fruto Proibido’ (1975) de Rita Lee e Tutti Frutti

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