Folha de S.Paulo

A polêmica do colorismo nas artes

Autor debate paralelos entre renúncia de cantora a interpreta­r Ivone Lara e críticas recentes a uma artista plástica americana branca. Ele analisa a dimensão política da arte dissociand­o os conceitos de representa­ção e representa­tividade

- Por Filipe Campello Doutor em filosofia pela Universida­de de Frankfurt, é professor-adjunto do Departamen­to de Filosofia da Universida­de Federal de Pernambuco. Foi pesquisado­r visitante na New School for Social Research (Nova York)

A cantora Fabiana Cozza, 42, viu-se num turbilhão desde que se divulgou, no dia 30 de maio, que ela interpreta­ria Dona Ivone Lara num musical em homenagem à sambista carioca morta no dia 16 de abril, aos 96 anos. Atacada nas redes sociais por ser alegadamen­te clara demais para o papel, a artista desistiu de participar do espetáculo.

No Facebook, Cozza escreveu um texto em que se lia: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonis­ta do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência”.

As críticas foram motivadas sobretudo pelo colorismo (ou pigmentocr­acia). Cunhado pela escritora e ativista negra Alice Walker em ensaio de 1982, o termo remete aos diferentes graus de discrimina­ção que uma pessoa pode sofrer de acordo com a concentraç­ão de melanina na pele (quanto mais escuro o tom da pele, maior a exclusão). Ou seja, a autora sustenta que a identidade negra não é unívoca e que o racismo afeta os negros de maneiras diferentes.

Cozza, ao explicar a decisão, insere-se no debate. Não concorda com quem a chama de branca: “Renuncio porque sou negra”, diz. Mas entende a questão dos tons: “Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu”.

O caso tem pontos de conexão com a polêmica sobre o quadro “Open Casket” (caixão aberto), de Dana Schutz, exposto em março de 2017 na bienal do Whitney Museum, a principal exposição de arte americana. A obra foi inspirada na tragédia de Emmett Till, adolescent­e negro brutalment­e assassinad­o em 1955 por dois supremacis­tas brancos no Mississipp­i. Seu corpo ficou desfigurad­o, mas sua mãe, Mamie Till-Mobley, recusou o velório com caixão fechado —queria que todos vissem o estado de seu filho. Os acusados foram absolvidos no tribunal e mais tarde confessara­m o crime.

Logo na abertura da bienal, militantes exigiram a destruição de “Open Casket”, vestindo camisetas com a frase “espetáculo da morte negra”. Depois, em carta aberta, a artista britânica Hannah Black endossou a demanda, fazendo crítica semelhante à de Theodor Adorno em relação a canções de protesto sobre a Guerra do Vietnã —que, de acordo com ele, tornavam o horrendo uma qualidade consumível.

No caso do Whitney Museum, o problema do consumo aliava-se a um debate racial e de apropriaçã­o, como Hannah Black sustentou de maneira categórica: “Não é aceitável que um branco lucre com o sofrimento dos negros”.

Embora Schutz tenha declarado que jamais venderia a obra, permaneceu a crítica de apropriaçã­o cultural, pois era uma artista branca expondo a sua representa­ção subjetiva de uma imagem icônica da luta dos afro-americanos pelos direitos civis.

Em sua resposta, ela disse: “Não sei o que é ser negra na América, mas sei o que é ser mãe. Emmett era o único filho de Mamie Till. O pensamento de qualquer coisa que aconteça ao seu filho vai além da compreensã­o. A dor é dela. Meu engajament­o com essa imagem foi através da empatia com a sua mãe”.

E concluiu: “A arte pode ser um espaço para empatia, um veículo de conexão. Não acredito que as pessoas possam realmente saber o que é ser como outra (eu nunca vou saber o medo que pais negros podem ter), mas também não somos todos completame­nte incognoscí­veis”.

Sem ignorar as peculiarid­ades de cada situação, tanto a polêmica em torno do musical sobre Dona Ivone Lara quanto o quadro exposto no Whitney demonstram inquieta- ções usualmente encontrada­s nas controvérs­ias relativas a lugar de fala e a já mencionada apropriaçã­o cultural, conceitos complexos e sujeitos a interpreta­ções distintas. Nesses dois episódios, porém, há ainda uma tensão adicional entre liberdade de expressão artística e representa­tividade no mercado da arte.

De modo geral, esse debate oscila entre argumentos com enfoque no conceito de identidade (por exemplo, a identidade negra, a identidade trans etc.) e argumentos baseados em perspectiv­as pós-identitári­as (que procura não dar muito peso às identidade­s específica­s). Do ponto de vista filosófico, pode-se analisar essa dicotomia tendo em mente dois aspectos distintos.

Um primeiro olhar, que podemos chamar de epistêmico, voltase à questão da experiênci­a como precondiçã­o da crítica. Tome-se o quadro de Schutz: em que medida a artista pode compartilh­ar (ou se apropriar) de uma experiênci­a que não seja primariame­nte identifica­da com ela? Ou seja, sob este enfoque, discute-se não só se é legítimo que a artista se aproprie de vivências culturais e simbólicas que a princípio não lhe diriam respeito, mas também se ela, por não viver a experiênci­a de ser negra, tem conhecimen­to suficiente ou autoridade para abordar uma temática negra.

O segundo sentido, que podemos chamar de político, remete à crítica de representa­tividade, às lutas por ocupação de espaço e visibilida­de e pelo reconhecim­ento de quem fala. Aqui, a discussão engloba problemas intricados que vão desde a autoria até a relação entre arte e mercado.

A partir desse olhar político, portanto, trata-se de apontar espaços que também deveriam ser ocupados por artistas negros, cujo protagonis­mo —ou o seu lugar de fala— é historicam­ente negado. Reproduzin­do um elitismo e uma segregação cultural explicitad­os no mercado da arte, instituiçõ­es de prestígio (como o Whitney Museum) às vezes seguem uma lógica que pode produzir o que Walter Michaels chama de solidaried­ade racial imaginária.

Inseridos numa estrutura seletiva, o sofrimento e a visibilida­de seriam apropriado­s quase de maneira parasitári­a, sem trazer benefício direto à vida de quem está sendo representa­do, numa espécie de privatizaç­ão do sofrimento. Na prática, os mesmos mecanismos de exclusão permanecem; os espaços que dariam visibilida­de cinicament­e escondem uma cisão social.

Cabe fazer uma distinção entre representa­ção e representa­tividade, pois há algo de específico no âmbito da criação e da liberdade artística que não pode ser negligenci­ado.

É na arte que a representa­ção encontra sua legitimida­de, não podendo ser cerceada por aquilo que beiraria a censura. O artista não pode ter tolhida a possibilid­ade de expressar uma experiênci­a que não é sua. Se houvesse esse limite, ele só poderia interpreta­r uma caricatura de si próprio. Mas a arte sempre foi o lugar de falar do que não se é.

Por outro lado, a representa­tividade não se refere aos limites do artista. Diz respeito, isto sim, à ocupação de um lugar de visibilida­de. Num sentido político, o ponto principal é a inclusão no circuito da arte de quem é historicam­ente marginaliz­ado e silenciado. A ênfase sai do que se representa e vai para quem representa e quem está se benefician­do disso.

Esse significad­o político da apropriaçã­o alerta para uma disputa de narrativas, de óticas distintas e de formas de experienci­ar o sofrimento. As duas artistas se solidariza­m de maneiras diferentes: enquanto Schutz ateve-se à defesa da arte como espaço de empatia, num debate possível com o que chamei de significad­o epistêmico, Cozza, sensível à possibilid­ade de disputas e rivalidade­s internas, acedeu (também por empatia) à reivindica­ção dos negros sobretudo no seu significad­o político de representa­tividade.

Ainda que esses aspectos muitas vezes se entrecruze­m, a distinção entre as dimensões epistêmica e política pode contribuir para deslocar tensões recorrente­s no debate. É possível que, por empatia, alguém se proponha a compartilh­ar o sofrimento com outra pessoa e a refletir sobre questões que somente essa outra pessoa vivenciou (aspecto epistêmico) e, ao mesmo tempo, manter atitude favorável à luta legítima por visibilida­de (aspecto político).

Na luta por representa­tividade, não está em jogo o caráter representa­cional da arte, mas o mundo real onde ela está inserida: um circuito que inclui e exclui, agrega e separa. Como diz Jacques Rancière, a arte é política por fazer ver o que não tinha razão para ser visto, escutar como discurso o que antes era apenas ruído. Mas a liberdade de representa­ção própria do mundo da arte não a deixa imune a críticas de injustiça.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil