Folha de S.Paulo

Uma primavera russa

Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília, correspond­ente e cobre Rússia desde 2000

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moscou A surpreende­nte campanha da desacredit­ada Rússia na Copa do Mundo gerou uma explosão de entusiasmo pela seleção nacional em Moscou.

Ruas que já estavam coalhadas de russos e turistas em plena confratern­ização se viram pintadas de vermelho, branco e azul na noite desta terça (19).

Gritos de “Rossia” ecoavam por estações de metrô usualmente sorumbátic­as depois da meia-noite. Buzinaços adornavam os engarrafam­entos usuais mesmo à noite. Algo está acontecend­o na Rússia de Vladimir Putin.

Não estava no radar. O próprio presidente disse, em discurso na véspera da abertura, que não esperava nada do seu time, apenas da organizaçã­o do Mundial. Putin é mestre da manipulaçã­o de sentimento­s nacionais. A sabedoria convencion­al dirá que ele poderá capitaliza­r a boa fase russa (não faltará quem vai acusar a presença de malas pretas), mas os elementos na mesa turvam essa leitura.

Em menos de uma semana, a Copa fez mais para mexer com o cotidiano dos moradores das cidades-sede do que anos de atuação de ONGs estrangeir­as, rotuladas por Putin como agentes fomentador­as da queda de regime.

Essa visão decorre do que o Kremlin considera papel central dessas entidades nas ditas revoluções coloridas, que derrubaram governos pró-Moscou na Ucrânia e na Geórgia no começo deste século. Assim como as várias edições da Primavera Árabe, elas soaram farsescas ao fim, mas como temor ocupam lugar de destaque no ideário putinista.

Internacio­nalista por vocação, a Copa de certa forma se contrapõe à visão de autonomia e isolacioni­smo esposada por Putin. “Eu nunca vi nada parecido. Os russos estão socializan­do com estranhos, algo que não é comum na nossa cultura”, atesta Ievguênia Mikhailova, dona do descolado bar Untitled, no centro de Moscou.

A questão que fica é sobre esse ânimo inusual despertado pela seleção local.

Ele pode de certa forma conectarse à latente insatisfaç­ão demonstrad­a por jovens em megaprotes­tos contra o Kremlin em 2017? Se sim, isso pode ser disruptivo no ambiente político ossificado da Rússia?

Ou, num sinal contrário mais condizente com a realidade de um país que deu 77% de seus votos a Putin em março, o “feel good factor” irá reforçar o plano de voo conservado­r do Kremlin?

Aposta por aposta, eu fico com a segunda opção. Mas a Copa neste fim de primavera russa sempre traz suas zebras.

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