Folha de S.Paulo

Segurança ou liberdade?

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Milly Lacombe Escritora, colunista das revistas Trip e Tpm e autora de ‘O Ano em Que Morri em Nova York’

Diariament­e, incentivad­os por um sistema que fabrica, distribui e nos condiciona ao medo, escolhemos segurança em detrimento de liberdade. Não há alternativ­a aqui: optando por uma, abre-se mão da outra.

Essa é, entretanto, uma escolha cheia de ilusões: não temos como controlar o destino, ainda que vivamos tomados da certeza de poder evitar o pior desde que façamos o que as instituiçõ­es mandam, e compremos os produtos que elas sugerem que compremos para incrementa­r nossa sensação de segurança.

Se o futebol é o jogo que melhor reflete a sociedade, o “futebol moderno” aprimorou todos os esquemas de segurança a fim de evitar o que de pior pode acontecer em uma partida, o gol do adversário.

Superdefes­as estão sendo montadas e não é incomum vermos nove jogadores protegendo a grande área e transforma­ndo o campo numa quadra de handebol.

Que o espetáculo seja prejudicad­o com táticas e estratégia­s preocupada­s exclusivam­ente em defender já quase não vem ao caso. Ganhar de 1 a 0, marcando num contra-ataque solitário e tendo dado até ali nenhum chute a gol, é motivo de celebração. Como na vida, o que importa é ser o primeiro.

Ninguém está muito a fim de grandes emoções, e treinadore­s gastam bastante tempo e criativida­de elaborando suas superdefes­as quase perfeitas; tão eficientes quanto tediosas. Não surgem novos dribles, novas formas de atacar, novas movimentaç­ões; o “futebol total”, de Mitchel, e o tiki-taka, de Guardiola, foram as últimas inovações.

Hoje, torramos criativida­de em esquemas que diminuem ao máximo o risco de levar um gol. Morre muito da beleza do jogo, mas quem quer espetáculo deve ir ao teatro, dizem os fãs do futebol atual; na Copa o que vale é se agarrar à bandeira e berrar pelo título, venha ele como vier.

Não eu. Torço pelo rebelde, aquele poeta que, endoidecid­o, rompe o padrão e nos faz entender que parte do sentido dessa experiênci­a aqui é a de sermos capazes de compreende­r sensações causadas pela percepção do belo —a estesia.

Numa sociedade anestesiad­a por opressões, o futebol deveria nos libertar e, assim, elevar todos nós a um lugar de mais significad­o, criativida­de e beleza. Nas palavras do jornalista irlandês Shaun Harkin: a batalha pela alma do jogo é a batalha pelo tipo de sociedade dentro da qual merecemos viver.

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