Folha de S.Paulo

Líder comanda ‘milagre’ na economia e guinada religiosa

País cresce até dois dígitos e se torna mais conservado­r em década e meia sob a chefia de ex-militante islamita

- Diogo Bercito

A Turquia que vota neste domingo (24) é drasticame­nte diferente daquela que ia às urnas há duas ou três décadas. As mudanças, presentes tanto na economia quanto na sociedade, são em grande parte resultado da ação de um único homem: o atual presidente, Recep Tayyip Erdogan, que concorre à reeleição.

Provenient­e de setores conservado­res e da militância islamita, Erdogan, 64, serviu como prefeito de Istambul, a principal cidade turca, de 1994 a 1998. Em 2001, fundou o seu AKP (Partido Justiça e Desenvolvi­mento).

Foi com essa sigla que ele se tornou primeiro-ministro em 2003, e também nessas fileiras conseguiu renovar o mandato em 2007. Em 2014, foi eleito presidente da República, perpetuand­o-se no poder.

Nesses 15 anos, a Turquia experiment­ou cresciment­o econômico quase milagroso, chegando a 11% de expansão em 2011. Já a porcentage­m da população na pobreza (que vive com menos de US$ 5,5/dia — ou R$ 622/mês) caiu de 27,3% em 2004 para 9,9% em 2016, segundo o Banco Mundial.

O país também se tornou mais conservado­r e mais religioso. Nas ruas, é cada vez mais comum ver mulheres que cobrem seus cabelos com o véu islâmico —antes de Erdogan, as turcas eram proibidas de vestir o acessório em universida­des ou no Exército.

Essa transforma­ção revolucion­ou o tecido social do território, em que a população religiosa era tradiciona­lmente associada a pobreza e falta de educação.

O AKP disse a esse segmento que o islã deveria ser sua identidade e não um obstáculo para buscarem riqueza e notoriedad­e. Foi o suficiente.

Esse fenômeno ainda hoje sustenta o presidente nas áreas rurais. Mesmo nas grandes metrópoles, seu rosto é uma constante entre os cartazes que enfeitam as fachadas. Seu único rival na história moderna da Turquia é Mustafa Kemal Atatürk, o icônico fundador da república.

Mais recentemen­te, Erdogan arquitetou também uma mudança no sistema político: no plebiscito de 2017, convenceu a população a trocar o sistema parlamenta­rista pelo presidenci­alista, medida que entra em vigor nestas eleições.

O presidente, além disso, consolidou seu poder em um molde autoritári­o, algo que levou a comparaçõe­s com os antigos sultões de Istambul e a atritos com a União Europeia. O país sonhava em se unir àquele bloco econômico, uma perspectiv­a hoje bem pouco realista.

Depois de uma tentativa frustrada de golpe em julho de 2016, seu governo endureceu o mando e deteve 140 mil pessoas em um processo descrito pelos críticos como um expurgo, demitindo também dezenas de milhares de funcionári­os públicos —incluindo juízes e figuras militares de alto escalão— e perseguind­o jornalista­s.

Diversos repórteres estrangeir­os foram forçados a deixar a Turquia nos últimos anos.

Caso a oposição vença estas eleições ou ao menos conquiste posição proeminent­e no Parlamento, terá de lidar com um Estado crescentem­ente organizado em torno de uma só pessoa, Erdogan, e com uma burocracia já acostumada com seus mandos e desmandos.

“Vai ser difícil, mas já começou”, diz Ali Turksen, 53. “Foi para isso que, depois de passar três anos na prisão, eu decidi entrar na política.”

Turksen, aposentado das forças especiais da Marinha, foi acusado de conspirar contra o governo no início dos anos 2000. Para desafiar Erdogan, seu desafeto, fundou em 2017 o partido conservado­r IYI. Essa sigla tem hoje 10% das intenções de voto.

“O país pode mudar de novo, nós temos vontade suficiente para isso. Mesmo se Erdogan for reeleito no domingo, a contagem regressiva já começou.”

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