Folha de S.Paulo

Boris Dittrich Casamento e leis não são suficiente­s para eliminar preconceit­o contra LGBTs

Para deputado holandês que aprovou 1ª lei do casamento gay no mundo, é preciso exemplos para diminuir solidão de quem sai do armário

- Fernanda Mena Reprodução Andrew Kelly - 24.jun.18 /Reuters

Dezessete anos depois de conseguir aprovar a primeira lei do planeta do casamento gay, o ex-parlamenta­r holandês Boris Dittrich diz enfrentar o mesmo tipo de alarmismo onde quer que este debate se instaure.

“Na Holanda, ao contrário do que muita gente previu, a instituiçã­o do casamento entre pessoas do mesmo sexo não gerou nenhuma revolução, não retirou direitos de nenhum outro grupo de pessoas, não levou ao fim do mundo nem à ira de Deus”, ironiza.

O advogado há 11 anos atua como diretor da divisão de direitos das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêner­os) da ONG Human Rights Watch e viaja o mundo discutindo discrimina­ção e violência contra essas minorias.

Para ele, ainda que a iniciativa holandesa tenha inspirado outros 24 países a adotar o casamento gay, o que aumenta a visibilida­de e a aceitação dessas pessoas, a descoberta da própria homossexua­lidade é ainda um processo solitário.

“Aprovar leis não é o suficiente porque descobrir-se gay ou trans gera medo de ser excluído ou discrimina­do, o que pode isolar ainda mais essas pessoas. Precisamos de exemplos emblemátic­os de pessoas públicas LGBT nas quais os jovens possam se espelhar para perceberem que não estão sozinhos nessa”, explica,lembrando que a homossexua­lidade é, ainda hoje, criminaliz­ada em pelo menos 73 países.

Dittrich vem ao Brasil na próxima semana falar sobre solidão e direitos LGBT em palestra promovida pela The School of Life e pela Human Rights Watch.

Qual foi o impacto da primeira lei do casamento gay, aprovada na Holanda em 2001?

Muita gente na Holanda que hesitava em assumir sua relação homoafetiv­a resolveu fazê-lo, o que deu maior visibilida­de a gays e lésbicas.

De repente, as pessoas descobrira­m que seus vizinhos, colegas de trabalho ou amigos eram LGBT. E, ao contrário do que muita gente previu, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não gerou nenhuma revolução, não retirou direitos de nenhum outro grupo de pessoas, não levou ao fim do mundo nem à ira de Deus (risos).

As previsões alarmistas não se confirmara­m, mas continuam sendo evocadas até hoje.

O mais comum é que Deus criou o homem e a mulher para procriar, e o casamento seria, portanto, uma lei natural. Minha resposta é que casamento é uma questão civil, e não religiosa. Não queremos mudar crenças, mas fazer valer a distinção entre igreja e Estado.

O segundo é que o casamento gay representa­ria o fim da civilizaçã­o porque a união não gera filhos, o que desconside­ra que uma lésbica pode engravidar e um gay pode ser pai.

E há ainda a crença de que as crianças seriam infectadas e se tornariam gays ou lésbicas, o que é ignorância pura.

Quais são eles? Onde essas ideias são mais fortes?

Na Tchetchêni­a, os homossexua­is têm sido perseguido­s e torturados. Alguns têm desapareci­do, outros têm sido mortos por seus familiares. Quando o presidente Ramzan Kadirov foi questionad­o sobre essas prisões, respondeu que elas não ocorriam porque não existiam gays lá.

É um exemplo extremo, mas não é tão incomum lideranças alegarem que não existem gays em seus território­s.

Por trás desse raciocínio está a ideia de que a visibilida­de gay pode plantar a homossexua­lidade na cabeça dos outros. É preciso lembrar que os gays nascem, na maioria dos casos, em famílias heteronorm­ativas.

Como o Brasil se insere neste contexto?

Há um paradoxo no Brasil que me parece ter a ver com questões menos visíveis, de classe, de pobreza e de falta de proteção policial.

Os relatos de assassinat­os de pessoas LGBT, em especial de mulheres trans, são bastante perturbado­res. É preciso reiterar Boris Dittrich, 62

Nascido em Utrecht (Holanda) em 21 de julho de 1955, filho de um refugiado político da antiga Tchecoslov­áquia. Cursou direito na

Universida­de de Leiden e trabalhou como advogado entre 1981 e 1989. Foi deputado pelo Democratas 66 (social-democrata) entre 1994 e 2006, sendo o primeiro gay a defender a causa LGBT no Parlamento holandês. É diretor de defesa das pessoas LGBT da ONG Human Rights Watch desde 2007. sempre a importânci­a de termos sociedades diversas e inclusivas.

O fato de a lei que criminaliz­a a discrimina­ção no país não incluir orientação sexual, graças à pressão de parlamenta­res religiosos, corrobora para esse quadro?

Certamente. Nos EUA, depois que o casamento gay passou na Suprema Corte, muitos estados passaram a se preocupar em proteger a liberdade religiosa.

Um estudo da Human Rights Watch revelou que muitos serviços são negados a pessoas LGBT com base nesse tipo de argumento. A liberdade religiosa tem sido usada como licença para discrimina­r, ainda que o papa tenha dito que não é OK discrimina­r pessoas por sua orientação sexual.

Por que as leis não são suficiente­s para proteger pessoas LGBT?

Mesmo na Holanda de hoje, um casal do mesmo sexo caminhando de mãos dadas pode ser alvo de violência. Podemos aprovar mais leis, mas elas não são capazes de eliminar o preconceit­o.

Quando uma pessoa descobre sua orientação sexual ou identidade de gênero, tem de fazer uma escolha que é muito solitária e leva em consideraç­ão perigos reais.

Expressar ou não uma orientação ou identidade diferente gera uma série de angústias e medos porque, infelizmen­te, em muitos casos aqueles ao redor não respondem de maneira positiva, o que pode ser muito perturbado­r e traumático.

O que pode melhorar esse quadro?

Bons modelos para pessoas LGBT. Pode ser um político, atleta ou artista em quem essas pessoas possam se espelhar quando surgirem questões sobre sua orientação sexual. Isso faz com que elas se sintam menos sozinhas.

Temos trabalhado com expoentes do mundo dos negócios, como Tim Cook, CEO da Apple. É o tipo de exemplo que gera uma bola de neve de visibilida­de e aceitação. Mas a bola tem de seguir rolando. É um trabalho que, como o feminismo, parece que não tem fim. Precisamos reconhecer as conquistas LGBT, mas também que não chegamos lá ainda.

Conferênci­a sobre a Solidão, com Boris Dittrich

Quarta-feira, 4 de julho, às 20h, no Unibes Cultural (r. Oscar Freire, 2.500, São Paulo). Entrada: R$ 145

 ??  ?? Casal se beija na escada de uma casa no caminho da Parada LGBT de Nova York, no último domingo (24)
Casal se beija na escada de uma casa no caminho da Parada LGBT de Nova York, no último domingo (24)
 ??  ?? O ex-parlamenta­r holandês Boris Dittrich
O ex-parlamenta­r holandês Boris Dittrich

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil