Folha de S.Paulo

Em confraria, voluntário põe a mão na massa por banquete a morador de rua

Espaço nos fundos de igreja em Perdizes recebe ritual semanal em clima de ‘festa comportada’

- Ricardo Kotscho Fotos Jorge Araújo/Folhapress

De um lado da mesa, 12 voluntário­s da vizinhança se preparam para servir o banquete semanal nos fundos da Igreja de São Domingos, em Perdizes (zona oeste).

De outro, 72 moradores de rua e de albergues, em filas organizada­s por ordem de chegada, oferecem os pratos diante dos fartos caldeirões de comida da melhor qualidade.

O ritual desta confraria da solidaried­ade se repete há 25 anos. No começo, era só um sopão, servido na porta da igreja, até que voluntário­s descobrira­m a quadra de esportes do convento dos dominicano­s e pediram para ocupar o espaço, desde 2013 cuidado por Carlos Alberto Munhoz de Moura, 54, o frei Carlinhos.

Os trabalhos na cozinha começam às 9h. Às 14h, é aberto o portão lateral da igreja, por onde começam a chegar os primeiros comensais, usando suas melhores roupas, como se fossem a um restaurant­e.

Além da comida, a confraria oferece roupas e sapatos doados por moradores. Remédios, só com receita médica.

Em suas casas, as voluntária­s contam com empregadas e cozinheira­s, mas ali são elas que põem a mão na massa para preparar os acepipes, doados pelos paroquiano­s.

Às 15h, frei Carlinhos dá a senha e os convidados se colocam de pé: “Vamos rezar?” Ao término do Pai Nosso, todos são convidados a se servir.

Um dos primeiros na fila é Luciano Alves Bezerra, 53, que não abre mão de uma cachacinha antes das refeições. Paulistano, foi abandonado pelos pais ainda pequeno e levado para a casa da avó, que o criou.

Quando ela morreu, em 1984, começou sua vida de morador de rua. Chegou a trabalhar como ajudante de feirante e numa tecelagem, mas depois passou a viver de biscates. Mora hoje na rua Rio Claro, perto da av. Paulista. É freguês na confraria há 15 anos.

“Obviamente, o que mais gosto daqui é da comida, mas é bom também porque a gente fica à vontade”, afirma.

Sentada junto à saída da cozinha, apoiada numa bengala, Cármen Núbia Echalar, 84, uma das pioneiras deste voluntaria­do, ainda supervisio­na os trabalhos, com a ajuda da filha Constância, 53, enfermeira, ambas bolivianas.

“Estamos precisando de mais voluntário­s para ajudar a servir, já estou ficando velhinha. Adoro isso, mas as pernas já não ajudam. Sou formada em voluntaria­do, nunca trabalhei em outro lugar.”

No cardápio do dia tem 13 kg de arroz, 7 kg de feijão, 8 kg de carne para almôndegas e picadinho, 10 kg de legumes para a sopa, além do saladão, preparado com verduras da horta do convento. A sobremesa é um creme de abacate.

De dez em dez, todos vão se servindo e, às 16h, tem o repeteco. Quem quiser pode levar o que sobrou sobre a mesa.

No comando da cozinha desde o início, Ivone Said Farah Franco, 87, é a mais animada. “Amo isso aqui. Já vim trabalhar até de braço quebrado. Venho com muito amor e prazer, gosto do que eu faço.”

Ivone é sempre a primeira a chegar ao trabalho e conta com um subchefe, José Roberto Magalhães, 55. “Eu trabalhei 30 anos como advogado e agora estou aqui, muito feliz”, diz, enquanto faz a salada.

Padeiro e confeiteir­o, Ezequiel Dutra, 52, veio de Londrina (PR) e mora no albergue Boraceia. Portador de HIV, separado da mulher, pai de uma menina que mora com sua irmã, ficou sem emprego, mas não se queixa da vida.

“Pelo menos por um dia da semana a gente mata a fome e isso dá oportunida­de para correr atrás e viver mais um dia. Obrigado pela atenção.”

Nael Tiago dos Santos, de Colorado (PR), volta para a mesa com tudo transborda­ndo do prato. Pai solteiro de três filhos, já tinha almoçado, mas montou um pratão para levar e assim garantir o jantar.

Em volta, num clima de festa comportada, ninguém está mais feliz que Ricardo Alberto Honorato, 40, paulistano, sem família e sem emprego. “No momento”, diz ele, mora na calçada da esquina da rua Antônio Carlos com a rua Frei Caneca, na região central.

Vivendo na rua desde os 10 anos, diz que já emagreceu muito, mas está com 172 kg. Alcoólatra, seu maior problema é encontrar roupas que lhe sirvam e uma clínica de recuperaçã­o para se internar.

Pois na segunda-feira (25) ele conseguiu pelo menos a roupa, confeccion­ada pela voluntária Celina Monte Claro: um bermudão preto e verde, tamanho 68, bem bonito, e uma camiseta extra-extra G.

Só que surgiu um problema, logo resolvido pela assistente social Raquel Ribeiro Coutinho, 53, contratada pelo convento para cuidar dos convidados: antes, Ricardo precisava tomar um bom banho, algo que não fazia há tempos, para vestir a roupa nova.

Evangélica no convento católico, Raquel o convenceu a ir para o chuveiro, com a ajuda de frei Carlinhos. “Precisava ver a alegria dele”, vem comunicar Carlinhos a Raquel, tão feliz quanto o gigante que saiu do convento outro homem.

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Espaço de igreja na zona oeste de São Paulo atende moradores de rua, que recebem banquete semanal preparado por voluntário­s

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