Folha de S.Paulo

Inspirada em Tchékhov, Cia. do Latão cria alegoria do estado de apatia social

Grupo estreia no Rio ‘Lugar Nenhum’, peça baseada em espetáculo­s e diários do dramaturgo russo

- Maria Luísa Barsanelli Maurício Battistuci/Divulgação

Autor geralmente lido do ponto de vista psicológic­o ou das relações pessoais, Tchékhov ganha contornos mais políticos e sociais em “Lugar Nenhum”, espetáculo que a Cia. do Latão estreia nesta quarta-feira (27) no CCBB do Rio. Depois, no segundo semestre, deve ganhar uma temporada paulistana.

“Essa leitura [apolítica] sempre me incomodou um pouco”, diz o diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho.

“A inscrição social é muito forte em Tchékhov, há sempre famílias cercadas por empregados, uma disputa de propriedad­es. E ele combina isso com uma subjetivid­ade falhada: personagen­s no limite da falha do inconscien­te.”

“Lugar Nenhum” é uma criação do próprio Latão a partir de diários e obras do dramaturgo russo, em especial “A Gaivota” e “O Silvano”, este um esboço que depois daria origem à peça “Tio Vânia”.

A história é dividida em sete quadros e se passa nos últimos anos do regime militar brasileiro, logo após o atentado do Riocentro, em 30 de abril de 1981, quando oficiais do Exército armaram a explosão de uma bomba no centro de convenções carioca.

Numa casa de praia na região de Paraty, sul do Rio, um grupo de amigos, todos artistas e intelectua­is, se reúne durante um fim de semana para celebrar um aniversári­o.

O aniversari­ante é um estudante de medicina, mas guarda aspirações artísticas. Seus pais, um cineasta decadente, da geração do cinema novo, e uma atriz que abandonou, no meio da temporada, um espetáculo em que atuava.

Estão todos à beira do delírio, mas num estado de paralisia. Apesar de consciente­s de todos os problemas que os cercam, como o regime ditatorial do país, não reagem, permanecem numa apatia.

“Isso ressoa muito a sociedade hoje. É uma crítica ao quanto estetizamo­s esse tipo de melancolia ou quanto isso vira uma desculpa de vários setores que poderiam agir, mas não agem”, diz Carvalho.

Há ainda um constante prejulgame­nto de pessoas e situações, algo muito comum hoje, segundo o diretor.

“As personagen­s fazem muito isto: condenaçõe­s e julgamento­s sem pé no real. Isso alude a um excesso de ideologia. As pessoas ideologiza­m um futuro melhor, mas na prática estão cometendo pequenos estragos, produzindo apenas discursos de fuga.”

Esse falso agir ecoa na personagem da atriz (papel de Helena Albergaria), que se irrita com esse teatralism­o cotidiano. “Fazemos em cena uma comédia ideológica. Como nas obras de Tchékhov, que são comédias patéticas de dor, mas de base ideológica.”

Ali também surge uma discussão sobre o fazer artístico e do teatro, permeado pelos diários de Tchékhov. O cineasta, por exemplo, almeja fazer um longa falando de forma épica sobre a arte brasileira.

É um debate que já permeou outros trabalhos do Latão, como “Ópera dos Vivos” (2010), peça em quatro atos que destrincha­va vertentes artísticas do Brasil dos anos 1960.

A escrita de “Lugar Nenhum”, feita de forma colaborati­va, com muito do texto vindo de improvisos e estudos na sala de ensaio, também remete às origens do grupo paulistano, que no ano passado celebrou seus 20 anos.

Carvalho, vindo do Teatro da Vertigem, se interessav­a pela narrativa, em especial a narrativa de pesquisa histórica e política. Dali vieram trabalhos de tom político, muitos dos quais em diálogo com a biografia brasileira.

Lugar Nenhum

Centro Cultural Banco do Brasil, r. Primeiro de Março, 66, Rio. Qua. a dom., às 19h30. Até

6/8. Ingr.: R$ 20. 16 anos.

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