Folha de S.Paulo

Espetáculo ‘Refúgio’ espelha a falta de compreensã­o sobre o mundo de hoje

- Lenise Pinheiro/Folhapress MLB

Aos poucos, eles vão embora, sem explicaçõe­s. Parecem ter sido sequestrad­os ou até mesmo mortos. Mas nada é muito claro.

Os personagen­s de “Refúgio”, peça do dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra, estão um tanto perdidos. São uma alusão à falta de compreensã­o sobre o mundo hoje.

“A gente acha que está entendendo muitas das coisas que estão acontecend­o, mas às vezes não estamos”, diz Dal Farra, lembrando casos recentes como o da greve dos caminhonei­ros, no qual demorou-se a compreende­r de onde vinham as reivindica­ções e quais exatamente eram elas.

“O nosso entendimen­to não está servindo para nada. O mundo mudou e a gente está tentando decodificá-lo com termos antigos”, continua ele.

Para isso, o diretor cria em cena uma atmosfera de absurdo e suspense, próximo do cinema noir. Há uma música soturna, telefones que ficam mudos, barulhos estranhos.

A trama acompanha uma personagem (Fabiana Gugli) que vê seu cotidiano mudar quando as pessoas à sua volta começam a sumir. Parentes, amigos, todos desaparece­m, não se sabe se por vontade própria ou se forçados.

Eles caem num lugar pouco definido —talvez um refúgio físico ou mesmo ilusório.

O ir embora, assim, também faz referência à insatisfaç­ão do brasileiro com a nação e sua vontade de sair daqui, explica o encenador, lembrando uma pesquisa Datafolha, publicada há dez dias, segundo a qual 62% dos jovens brasileiro­s sairiam do país se tivessem a oportunida­de.

“É o sonho de um lugar onde as coisas sejam melhores. O louco é que esse lugar, muitas vezes, tem coisas como [Donald] Trump prendendo crianças”, afirma Dal Farra.

Ele se refere à detenção de menores de idade em abrigos nos Estados Unidos, separadas de seus pais, que tentaram imigrar ilegalment­e ao país.

Esse sentimento de decepção já permeou alguns dos trabalhos anteriores do dramaturgo —sua trilogia “Abnegação” partia da desilusão com o PT; “Branco” é uma autocrític­a sobre o racismo.

Mas na história de “Refúgio”, nada se fecha. Não fica claro por que todos eles sumiram e para onde foram. De repente, eles retornam, mas tampouco sabem explicar que lugar era esse e como chegaram lá.

No espetáculo, há sempre alguém filmando esses personagen­s, por frestas ou cantos, sempre de forma escondida. O registro da câmera é projetado no palco, dando ao espectador uma outra visão sobre a mesma cena.

Já o cenário de Marisa Bentivegna cria ambientes um tanto realistas, divididos por paredes modulares. Elas se abrem e fecham, mostrando e escondendo espaços, mas nunca se conectam.

“É como um quebra-cabeça de peças que não se encaixam”, afirma Dal Farra. “Talvez a gente precise aprender a não entender as coisas.”

Refúgio

Sesc Bom Retiro, al. Nothmann, 185. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 29/7. Ingr.: R$ 9 a R$ 30. 14 anos.

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As atrizes Fabiana Gugli (esq.) e Carla Zanini durante ensaio de ‘Refúgio’ no teatro do Sesc Bom Retiro

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