Folha de S.Paulo

Na Itália, México mostra que má fama de dramalhões é cegueira

- Inácio Araujo Lorenzo Burlando/Divulgação

Martin Scorsese é um superstar em Bolonha, tanto pelos filmes que fez como pelos que recupera. Não por acaso, ao apresentar o restauro de “Enamorada” (1946), comparou sua vinda ao Ritrovato com uma peregrinaç­ão.

Comparação a caráter para um filme mexicano, fortemente impregnado pelo misticismo católico. Mas também para um local que, como ele próprio acentuou, não trata do passado do cinema, mas cuida do passado, do presente e do futuro.

O fato é que Scorsese, para surpresa maior, deu o crédito central desse restauro a Olivia Harrison. A viúva do beatle George também é uma campeã do restauro. Mais: ela é fã do cinema clássico mexicano —e fez a cabeça de Scorsese para também investir nele.

E “Enamorada”, se não houvesse outra razão, é a obraprima de Emilio Fernández. E de Maria Félix e de Gabriel Figueroa, cuja fotografia não se permite nunca ser menos do que exuberante.

Não é de se espantar que a plateia que lotou todos os cantos da piazza Maggiore para ver Scorsese tenha ficado até o final dessa alegoria irretocáve­l do “amour fou” surrealist­a, na noite inaugural da mostra, no sábado (23).

O amor de um general revolucion­ário pela filha de um antirrevol­ucionário desafia a razão. Mas a jovem forte Beatriz é, no caso, Maria Félix. E o general (Pedro Armendáriz) não hesita em botar um grupo de mariachi para fazer uma serenata para ela. Podia ser ridículo. Mas com tantos talentos envolvidos? Nem pensar. Resulta que temos ali um primeiríss­imo plano dos olhos da Beatriz que é um dos mais belos da história da imagem.

No mais, a latinidade é o que mais marcou esse início de festival. Na manhã de segunda (25), “Vítimas do Pecado” (1951), também de Fernández, levou-nos à atriz Ninón Sevilla e ao filme de rumbeiras.

Quer dizer, ao cinema de cabarés com prostituta­s de bom coração e explorador­es criminosos. Mais um feito notável no estilo de melodrama mexicano, isto é, de paixões, demências e sofrimento feminino sem fim. Nos dois filmes, no entanto, Fernández constrói a imagem de mulheres tão fortes quanto íntegras.

Em seguida veio “Rosauro Castro” (1950), de Roberto Gavaldón. Se Fernández faz frente com a revolução mexicana, da qual participou, Gavaldón não alisa a herança daquele momento. Seu filme ataca a institucio­nalização do período sem meias tintas.

É um homem de esquerda não comunista que não se conforma com os antigos revolucion­ários terem se tornado donatários de terras —e, aliás, tiranos. É o caso de Rosauro, interpreta­do por um Pedro Armendáriz que nunca vi tão bom.

Esse notável trabalho de Gavaldón ficou na sombra por muitos anos por causa da dominação do PRI (Partido Revolucion­ário Institucio­nal). Retorna com força: o ataque a manda-chuvas semifeudai­s, como os coronéis brasileiro­s, é sempre oportuno.

O México, sempre insurgente, mostra aqui que a má fama dos dramalhões do país aqui no Brasil é coisa de cegueira ou preconceit­o. Ou ambos.

Essa força que está nos filmes vem em boa parte da parceria entre as obras e o seu público, ao contrário do Brasil, onde a tradição consiste em lutar contra a indiferenç­a e incompreen­são dos espectador­es.

O brilho do México mostra quanto somos precários, de certa forma —e quanto o Brasil se recusa a se ver tal qual é.

Por fim, não por último, o raro “Rosita” fechou a segunda na piazza. O filme de 1923 foi não menos que a estreia de Ernst Lubitsch no cinema americano, onde o alemão chegou contratado pela estrela Mary Pickford.

Ela interpreta a cantora de rua sevilhana que, com sua beleza, mas sobretudo personalid­ade, encara um rei mulherengo.

É claro que o rei sofrerá nas mãos da mulher, como a demonstrar que este é um ano dedicado a comprovar a força feminina pré-feminismo.

Pickford detestou o filme e despediu Lubitsch, alegando que ele gostava de dirigir portas e não atores. Com efeito, há portas a dar com o pau no filme, um entra e sai constante, mas fica a impressão de que a atriz não gostou é do equilíbrio do filme, que a torna menos importante (ou menos aparecida) do que gostaria.

Em todo caso, o longa foi um sucesso e a carreira de Lubitsch na América teve a grandeza que se sabe. Mas o filme ficou ao relento e só pôde ser restaurado graças a duas cópias precárias: uma achada na Rússia e outra guardada pela Mary Pickford Foundation.

Por isso, o restauro foi um pererê, mas resultou no reencontro com um belo filme de costumes por vezes cômico e já com a marca de Lubitsch.

Transex

21h. Espaço dos Satyros Um, pça. Franklin Roosevelt, 214. Ingr.: R$ 5 (moradores da praça) a R$ 10 (grátis para pessoas não binárias, transexuai­s, travestis e agêneros). Livre.

O grupo Os Satyros estreia remontagem do seu espetáculo de 2004. A trama acompanha o amor entre dois transexuai­s e faz homenagem à atriz Phedra de Córdoba, morta em 2016.

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Exibição de ‘Enamorada’, do mexicano Emilio Fernández, no festival Ritrovato, na piazza Maggiore, em Bolonha, na noite de sábado (23)

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