Folha de S.Paulo

Neymar, suas quedas, seus cabelos

Você critica os fingimento­s e chiliques do astro? Tome cuidado, pode ser machismo

- André Stefanini Marcelo Coelho Mestre em sociologia pela USP e membro do Conselho Editorial da Folha. Escreveu ‘Patópolis’ (Iluminuras) e ‘Montaigne’ (Publifolha) coelhofsp@uol.com.br

Tenho pouca pretensão de, sozinho, reformar o mundo. Algumas coisas, entretanto, gostaria de decretar de forma irrevogáve­l, sem possibilid­ade de embargos no Supremo. Seriam mudanças modestas. Por exemplo, as roupas da rainha da Inglaterra. A começar daquela coleção de cartolinha­s que, desde 1960 pelo menos, só mudam de cor.

Quem viu o seriado “The Crown”, mostrando Elizabeth no começo do reinado, sabe

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QS S que ela era uma moça com doses razoáveis de vaidade, bastante incomodada com a superior elegância da primeira-dama americana quando John F. Kennedy visitou a Inglaterra.

Passam-se os anos, e a rainha terminou metida em horríveis conjuntinh­os monocromát­icos de saia e casaqueto. A idade vai diminuindo sua estatura, a cartola se enterra nos ombros, e eis que, conforme o dia, Elizabeth se assemelha a uma beterraba, uma alface, uma couve ou um pepino.

Enquanto Kate Middleton e, em menor medida, Meghan Markle dão shows de elegância em eventos oficiais, a pobre Elizabeth sequer tem o direito de usar uma coroa —só aquela tampa colorida na cabeça.

Só que, como dizia o velho Hegel, o real é racional, e o racional é real. Leio que, ao menos, existe razão para a roupa da rainha ter uma cor só. Trata-se de uma medida de segurança: sempre será fácil identificá-la

Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | no meio da multidão.

Mas, como também dizia o velho Hegel, a coisa é dialética: se para os guarda-costas é fácil identificá-la, também o trabalho de atiradores inimigos, situados em postos estratégic­os, há de tornar-se mais simples.

E, se importa saber sempre onde ela está, minha proposta seria usar uma tiara de LEDs, ou uma coroa de estrelinha­s, em vez daquele prosaico disfarce de coelho da Alice —os sapatos combinando— em que a

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Contardo Calligaris puseram faz mais de 50 anos.

Digo tudo isso pensando na simpática argumentaç­ão de Lulie Macedo, na Folha deste sábado (23), em favor dos cortes de cabelo bizarros dos futebolist­as nesta Copa.

Como sabem todos que já usaram uniforme, diz a colunista, “o que sobra para expressar alguma identidade é cabelo, pele (tatuagem) e tênis (ou chuteira)”. Neymar e seus colegas teriam razão, assim, para tantas acrobacias capilares: como todo ser humano, rebelam-se contra o anonimato. Digo de outra forma.

Cada um desses astros está de tal modo acostumado a atrair as atenções (em boates, restaurant­es, hotéis) que não consegue se adaptar à única situação em que é simples mortal, ao lado de outros 21, na democracia do campo.

Arrisco uma explicação suplementa­r: assim como a roupa da rainha da Inglaterra, o cabelo de cor diferente e corte absurdo ajuda a identifica­r cada jogador em campo.

O que serve, naturalmen­te, para os companheir­os de time serem mais rápidos na hora de passar a bola. Só que também ajuda os adversário­s, na hora de marcar e fazer faltas.

O fato é que não me irrito muito com as invencioni­ces de Neymar em matéria de cabelo. Nem mesmo com as quedas, simulações e queixas que prodigaliz­ou nestes jogos da Copa.

É provável que, fora a malandrage­m para cavar falta, todo seu comportame­nto tenha uma base comum.

O talento extraordin­ário de Neymar sempre chamou

| Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti a atenção. Ele poderia ser como Messi, cuja modéstia o leva a se esconder atrás da própria genialidad­e; desaparece atrás da bola. Mas ele optou pelo inverso: o cabelo, as tatuagens, seriam como uma forma de driblar as atenções gerais, um chamariz, de modo a esconder aquilo que realmente o faz um jogador fora de série.

Surge um zagueiro e faz falta nele. Neymar rola no gramado, assume expressões de tragédia grega, enfurece-se, fica ofendido. Estrelismo? Sem dúvida.

Mas sua irritação parece, no fundo, vir de outro lugar. Ele se irrita como se os adversário­s fossem paparazzi; cada falta que sofre é uma invasão de sua privacidad­e.

Impedem-no de ser ele mesmo. Se o atacaram, não foi pelo perigo de gol, mas porque implicaram com seu cabelo, seu sucesso, suas tatuagens.

Não foi vítima de um empurrão: foi vítima de vandalismo, de assédio, de abuso.

Assim —como todo mundo que se vê atingido por crimes de ordem moral—, Neymar precisa de fato exagerar, ou melhor, teatraliza­r seus sentimento­s.

Não me entendam mal. Quem ouve um xingamento ou recebe algum tipo de assédio realmente sofre com isso. Só que, como seu sofrimento pode ser interno, invisível, é necessário assinalar o evento com especial estridênci­a, de modo a evitar ambiguidad­es.

Neymar é um assediado. Será muito machista quem disser que, com aquela pintura no cabelo, ele estava pedindo por isso.

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