Folha de S.Paulo

No fim, dá no mesmo comer carne de porco ou de cachorro

- -Marcos Nogueira

Alimentar-se da carne de cães e gatos é um tabu dos mais cabeludos. Não deveria ser.

“Se você não comeria seu cachorro, por que come porco?”, diz um slogan do Peta —sigla em inglês para Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, grupo de militância vegana.

Sou obrigado a concordar com o argumento. Matar um porco equivale a matar um cachorro. Ambos são animais sociais e inteligent­es.

Responda sinceramen­te: se você fosse um ET que desconhece os hábitos humanos, veria diferença entre um vira-latas assado e um frango de televisão?Entreumgat­oensopado e uma chanfana de cordeiro?

Em nome da coerência, você pode condenar incondicio­nalmente o abate de animais, como faz o Peta. Ou considerar a carne como elemento inerente à dieta humana. E não existe carne sem a morte de um animal. Incluindo os fofos.

Tendo a ficar no segundo time, embora a coisa adquira contornos mais complexos quando há primatas sobre a mesa e outros primatas à mesa.

No mundo ocidental, o pessoal se equilibra entre os dois extremos. Fãs de bacon e picanha repudiam o consumo de cães e gatos —estes existem para suprir nossa carência afetiva sem contrapart­idas. Uma posição hipócrita.

Antes que as tias dos gatos venham no meu encalço, pausa. Não estou propondo uma churrascad­a de siameses, labradores e calopsitas no estacionam­ento da Cobasi. Meu questionam­ento é circunscri­to à esfera de discussão moral.

Os hábitos alimentare­s de cada sujeito obedecem a uma porção de fatores individuai­s e grupais. Todos temos algum tipo de restrição. Uns não encaram entranhas (presente!), outros, coentro ou azeitona.

A repulsa pela carne de animais de estimação é um traço cultural dos cristãos europeus que colonizara­m as Américas e outras partes. Nós tratamos essas criaturas como filhos; devorar os próprios filhos pega mal à beça.

Pessoas onívoras, adultas e instruídas, contudo, deveriam racionaliz­ar a questão quando o comedor de cachorros é um chinês ou um coreano. Eles nasceram em lugares onde a carne canina faz parte da dieta. Quando emigram, desafiam os costumes e a legislação do país que os acolheu. Estarrecem a população.

Outro dia, saí para tomar cerveja com um grupo de amigos que incluía dois coreanos. Depois de alguns copos, alguém (posso ter sido eu) puxou o assunto-tabu. Constrangi­mento geral. Tergiversa­ção.

Nunca comi carne de cachorro porque não fui apresentad­o. Não sou tarado de correr atrás. No Brasil, recusaria por questões sanitárias. Na Ásia, não sei. Talvez amarelasse. Sempre tive gatos e venho do mesmo saco cultural que pariu a maioria dos brasileiro­s. Mas talvez não amarelasse.

Também não sei se os meus amigos asiáticos já mandaram ver no steak-au-au-poivre. Só sei que eles sofrem racismo e por isso fogem do assunto. Se ousarem contrariar a conduta cristã ocidental, vão ganhar o carimbo de bárbaros. Animais. Menos humanos do que um poodle.

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