Folha de S.Paulo

Soro não chega aonde há mais picada de cobra no Brasil

Remédio distribuíd­o pelo Ministério da Saúde precisa ser mantido gelado

- Leão Serva

vale do javari (am) O Brasil tem um soro antiofídic­o que funciona onde não tem cobras, e tem picadas de cobras onde não tem soro.

A definição dramática de Josimar Vassimpa, 49, índio marubo no Vale do Javari (AM), é o resumo das inúmeras reclamaçõe­s ouvidas de líderes indígenas, antropólog­os, políticos e profission­ais de saúde dedicados a índios e não índios na Amazônia, durante as recentes viagens em que a Folha acompanhou o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado na maior floresta do planeta.

O antídoto para veneno de cobras produzido no Brasil, distribuíd­o por órgãos do Ministério da Saúde, é líquido e precisa ser preservado em baixas temperatur­as. Em todas as áreas onde não há energia elétrica para manter um refrigerad­or, o soro antiofídic­o não está disponível.

E esse é o caso da maioria das comunidade­s amazônicas, onde ocorrem 35% de todos os chamados acidentes ofídicos, as picadas de cobra. Outros países da região, como Colômbia, México e Costa Rica, produzem soro em pó, que o Brasil não importa.

O problema não acomete só índios e nem é exclusivid­ade brasileira. No ano passado, a Organizaçã­o Mundial de Saúde declarou as picadas de cobra doença tropical negligenci­ada, definição para problemas sanitários que poderiam ser resolvidos, mas que não recebem a atenção devida.

A resolução da OMS, ratificada pela Assembleia Mundial de Saúde no último dia 24 de maio, em Genebra (Suíça), teve apoio do governo brasileiro que, no entanto, é acusado internamen­te de negligenci­ar o tratamento do problema.

As estatístic­as oficiais apontam que, a cada ano, 30 mil brasileiro­s são vítimas de picadas de cobra, 10,5 mil na Amazônia. Das vítimas, cerca de 2 mil têm reações graves e 300 morrem. A pequena proporção de óbitos esconde um elevado número de amputações e paralisias provocadas pelo envenename­nto, frequentem­ente pela dificuldad­e para administra­r o soro.

No mundo, são 2,5 milhões de casos anuais de envenename­ntos por mordidas de serpentes, que causam 125 mil mortes e deixam outras 400 mil pessoas com sequelas físicas ou psicológic­as, informou à Folha o pesquisado­r José María Gutierrez, representa­nte da Costa Rica que foi um dos principais respon- sáveis pelos documentos que levaram à resolução da OMS.

Tanto no Brasil quanto no exterior os estudiosos apontam uma alta dose de subnotific­ação: além de mais expostas, as comunidade­s desassisti­das carecem também de comunicaçã­o para informar os acidentes aos órgãos de saúde.

O soro antiofídic­o disponibil­izado no Brasil pelo Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde é comprado de três laboratóri­os públicos, sendo o maior deles o paulista Butantan, responsáve­l por metade da produção nacional. O instituto Vital Brazil (Niterói, RJ) e a Fundação Ezequiel Dias (Belo Horizonte, MG) são responsáve­is pelos outros 50%.

As dificuldad­es decorrente­s da falta desse remédio nas áreas sem energia elétrica causam revolta entre as comunidade­s. Os índios ouvidos pela Folha no Vale do Javari reclamam a importação do soro liofilizad­o produzido em outros países (Colômbia, México e Costa Rica têm o produto).

Muitos profission­ais acostumado­s a viajar pela Amazônia, contam que frequentem­ente levam o soro colombiano, que não pode ser vendido no país por não ser reconhecid­o pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

No entanto, técnicos do Butantan e médicos consultado­s pela Folha dizem que o produto não oferece segurança ao consumidor brasileiro por não ter sido produzido com venenos de serpentes locais.

O médico Douglas Rodrigues, por vários anos coordenado­r do programa Xingu da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), diz que se defrontou muitas vezes com problemas decorrente­s da falta de geladeiras para o soro. “No Parque Indígena do Xingu, a vítima é rapidament­e levada de avião para a vizinha Canarana (MT). Mas em muitos lugares não há essa possibilid­ade. É preciso implantar fontes de eletricida­de em todas as comunidade­s.”

Ricardo Affonso Ferreira, criador da ONG Expedicion­ários da Saúde, que a cada ano realiza milhares de cirurgias gratuitas em toda a Amazônia, sugere que os órgãos oficiais façam testes para determinar quanto tempo um soro líquido mantém sua eficácia fora da geladeira, como possibilid­ade alternativ­a.

Em 1999, o Exército Brasileiro encomendou soro liofilizad­o ao Butatan para usar em suas unidades na Amazônia. O remédio foi desenvolvi­do em caráter experiment­al numa parceria do Instituto de Biologia do Exército (Ibex) com o laboratóri­o paulista. As primeiras doses foram entregues em 2000.

Segundo estudo feito na época, a partir de 102 atendiment­os a vítimas de picadas (58 tratados com o soro liofilizad­o e 44 com a versão tradiciona­l), não houve diferença estatístic­a na quantidade de reações adversas entre os dois tipos de soros, segundo os pesquisado­res Iran Mendonça da Silva e Antônio Magela Tavares.

Sem um investimen­to externo, no entanto, o Butantan não deu sequência ao desenvolvi­mento do produto.

Quando senador, o atual governador do Acre, Tião Viana, propôs uma lei determinan­do ao Ministério da Saúde a produção de 50% de soro liofilizad­o. Aprovada no Senado em 2003 e nas comissões da Câmara em 2009, o projeto aguarda há nove anos pela votação em plenário. “O tema é negligenci­ado também pelo Congresso Nacional”, afirma.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil