Folha de S.Paulo

Direita envergonha­da

- Marcus André Mello

“Direita envergonha­da” (“abashed right”, no original) foi a expressão utilizada pelo cientista político Timothy Power, da Universida­de Oxford, para referir-se ao paradoxo de os políticos brasileiro­s —que em outros países se auto definiriam como de direita—recusarem essa qualificaç­ão.

Duas década após a publicação do seu livro “The Political Right in Post-Authoritar­ian Brazil: Elites, Institutio­ns and Democratiz­ation”, Penn State University Press, 2000, (A Direita Política no Brasil Pós-Autoritári­o: Elites, Instituiçõ­es e Democratiz­ação), ocorre curiosa inversão: a normalizaç­ão do nosso sistema partidário, pela emergência de partidos e setores autodefini­dos como de direita e ultraconse­rvadores, tem causado perplexida­de descabida.

O fenômeno da direita envergonha­da não é novo, muito menos brasileiro. Albert Thibaudet registrou na década de 1930 o que chamou de sinistrism­o: a diferencia­ção do sistema partidário na França pela proliferaç­ão de novos partidos, sempre pela esquerda. O termo direita, argumentav­a, havia adquirido conotação pejorativa devido à associação com a monarquia e à idolatria da república.

O mesmo aconteceu no Brasil e na América Latina em que a qualificaç­ão de direita passou a ser associada aos regimes militares e ao autoritari­smo (tolerado na agenda pública em sua versão à esquerda).

O sinistrism­o mudou: nas últimas décadas há uma tendência de afastament­o dos antigos modelos de partidos socialista­s e comunistas. Brasil, África do Sul e Índia são as únicas democracia­s em que ainda existem partidos comunistas não reformados com presença ativa na arena pública.

Partidos de extrema direita e ultraconse­rvadores existem em todas as democracia­s classifica­das como plenas pelo The Economist Intelligen­ce Unit. As democracia­s têm remédios constituci­onais para violações da ordem constituci­onal. Todo cuidado é pouco porque a tentação iliberal tem sido muito forte. Mas não há nada patológico, pelo contrário, no surgimento de partidos que defendem pautas ultraconse­rvadoras.

Preferênci­as que permanecem latentes, como as conservado­ras, explicam fenômenos que causam perplexida­de, como mobilizaçõ­es sociais súbitas, rebeliões, etc. Esse é o argumento da falsificaç­ão de preferênci­as de Timur Kuran em “Private Truths, Public Lies”, (Verdades Privadas, Mentiras Públicas), Harvard University Press, 1995.

Assim, não há uma nova direita conservado­ra que adquiriu voz com o Bolsonaro: ela sempre existiu desde o fim do regime militar, com suas verdades privadas. Mas, é claro, beneficia-se, e muito, do choque no sistema partidário produzido pela Lava Jato.

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