Folha de S.Paulo

No mundo dos agrotóxico­s, não há jantar grátis

Discurso de modernizaç­ão só tenta enganar público

- Bela Gil, Marcio Astrini e Marcos Palmeira

Nas últimas semanas, a sociedade se mobilizou contra a aprovação do projeto de lei 6299/02, chamado de Pacote do Veneno, que quer colocar ainda mais agrotóxico­s no prato dos brasileiro­s.

Ao longo do debate, diversos órgãos declararam que as consequênc­ias desse projeto seriam catastrófi­cas para a saúde e o meio ambiente: Ministério Público Federal, Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer, Ministério Público do Trabalho, Anvisa, Ibama, Ministério da Saúde, Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e mais de 300 outras organizaçõ­es da sociedade civil.

Difícil acreditar que todos esses órgãos, seus cientistas e pesquisado­res estariam errados, ficando a razão e o interesse público exclusivam­ente ao lado de um punhado de deputados e das indústrias que têm interesse na comerciali­zação de pesticidas. Obviamente, não é o caso.

Os autores da proposta insistem em dizer que ela traria modernizaç­ão ao setor, desburocra­tizando processos e permitindo o registro de produtos mais modernos. Simplesmen­te não é verdade. Tal discurso não está presente em nenhum momento das mal traçadas linhas do texto apresentad­o.

Nas mais de 80 páginas do projeto de lei, não há qualquer regra estabelece­ndo que apenas poderão ser registrado­s agrotóxico­s mais modernos ou que diminuam o risco ao meio ambiente e à saúde da população. Em momento algum, figura a necessidad­e de se aprovar apenas produtos de baixa toxicidade. O discurso do moderno é vazio e tem a única serventia de tentar enganar o público ouvinte.

Na letra da lei, o projeto permitirá o uso e registro de produtos com potencial cancerígen­o, capazes de causar malformaçã­o fetal e mutação genética, alguns deles proibidos em outros países. Substância­s banidas ao redor do mundo ganharão mercado por aqui.

Além disso, caso a requisição de registro de agrotóxico não tenha desfecho em menos de 24 meses, o produto poderá ganhar o direito provisório e ser usado, enquanto as análises de sua periculosi­dade correm em paralelo.

O projeto deixa absolutame­nte clara sua intenção ao retirar da análise de tais substância­s os órgãos que hoje cuidam da saúde pública e ambiental. Depositam a força decisória nas mãos apenas do Ministério da Agricultur­a e na boa vontade das empresas. Para substância­s que causam câncer, instituem o conceito de “risco aceitável”, uma espécie de brincadeir­a tenebrosa com a saúde da população.

O conteúdo vergonhoso do projeto de lei em questão só conseguiu ser superado pelo desempenho dos deputados defensores do projeto no dia de sua aprovação, no último dia 25 de junho, na comissão especial que tratava do tema.

Enquanto as notas técnicas de órgãos de pesquisa eram lidas em plenário, alguns deputados ruralistas foram flagrados vendo fotos de mulheres seminuas, enquanto outros assistiam a jogos da Copa.

No final, o placar foi explícito: trocaram a saúde da população por interesses políticos e econômicos. O projeto ainda precisa passar pelo plenário da Câmara, Senado e sanção presidenci­al.

Após a votação, os defensores do projeto ainda se reuniram em um sofisticad­o restaurant­e para o jantar de comemoraçã­o. A conta teria sido paga por um empresário do setor, interessad­o no avanço do PL do Veneno. Como já estamos cansados de saber, em Brasília não há jantar grátis.

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