Folha de S.Paulo

Perdido e achado

Um dos músicos de jazz mais cultuados da história, John Coltrane ganha lançamento inédito com o recém-descoberto ‘Both Directions at Once’, disco gravado em um único dia, em março de 1963

- Giovanni Russonello

nova york Se você assistiu ao John Coltrane Quartet ao vivo no começo e metade dos anos 60, é provável que isso tenha mudado a maneira pela qual entendia o que é um show ao vivo. Era uma banda devastador­a, quase uma entidade física, portadora de uma promessa que parecia se estender muito além da música.

O relacionam­ento do quarteto com o estúdio, no entanto, era bem diferente. Nos anos que antecedera­m “A Love Supreme”, sua explosiva obra-prima de 1965, Coltrane gravou oito álbuns para a Impulse! Records com o seu chamado “quarteto clássico” —o baixista Jimmy Garrison, o baterista Elvin Jones e o pianista McCoy Tyner—, mas apenas dois deles, “Coltrane” e “Crescent”, eram gravações de estúdio sérias.

Mas agora essa história receberá uma importante nota de pé de página.

Na sexta (29), a Impulse! lançou “Both Directions at Once: The Lost Album”, um conjunto completo de material gravado pelo quarteto em um só dia, em março de 1963, e depois guardado e perdido.

A família da primeira mulher de Coltrane, Juanita Naima Coltrane, recentemen­te descobriu a cópia das fitas que o jazzista recebeu e que sua então mulher guardou.

A coleção contém sete faixas, uma mistura bem balanceada que sugere claramente que Coltrane tinha em vista criar um álbum completo naquela sessão. E, pelo som das gravações, teria sido um disco muito importante.

“Em 1963, todos aqueles músicos estavam chegando ao pico de seus poderes musicais”, disse o saxofonist­a Ravi Coltrane, filho de John, que ajudou a preparar “Both Directions at Once” para lançamento. “Nessa gravação, a sensação é de que John tem um pé no passado e um pé se encaminhan­do ao futuro.”

Coltrane chegou à Impulse! logo depois de conseguir um imenso sucesso com “My Favorite Things”, e o produtor Bob Thiele se sentia obrigado a prover uma série de projetos com perspectiv­as comerciais.

“Coltrane” e “Crescent” são os álbuns em que ele condensa para a posteridad­e, em estúdio, o estilo que sua banda exibia ao vivo. Mas sobre os dois anos que separam as gravações —no segundo trimestre de 1962 e no segundo trimestre de 1964— não tínhamos grande referência. Até agora.

“Both Directions at Once” foi gravado no Rudy Van Gelder Studio, em Nova Jersey, o principal palco para o registro de pequenos grupos de jazz, em 6 de março de 1963. Um dia depois da gravação, o quarteto de Coltrane —que estava no meio de uma temporada de duas semanas no Birdland de Nova York— voltou ao estúdio com Johnny Hartman, um cantor conhecido pelo barítono veludoso, para gravar seu disco com ele, que se tornou um clássico.

Mas na coleção redescober­ta ouvimos alguma coisa próxima à amplitude sonora que Coltrane e seus companheir­os produziam no palco. “Há muita substância musical, mas em um contexto que será mais acessível para a maioria dos ouvintes”, disse Lewis Porter, pianista e pesquisado­r musical que recebeu uma cópia do álbum antes do lançamento.

A Impulse! está lançando o álbum como disco simples, contendo uma versão de cada uma das sete faixas gravadas naquele dia. Mas quem comprar a edição de luxo, que oferece um segundo disco com sete versões alternativ­as das mesmas faixas, o maior prêmio serão as quatro versões de “Impression­s”. The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

Both Directions at Once John Coltrane, Amazon, US$ 15,99 (CD) ou US$ 27,79 (vinil).

Carlos Calado Para quem não está familiariz­ado com a obra de John Coltrane (1926-1967), a revelação de 14 gravações inéditas desse saxofonist­a e compositor, reunidas no álbum “Both Directions at Once”, poderia ser comparada à descoberta de uma coleção de pinturas de Pablo Picasso. Em outras palavras, um pequeno tesouro para os apreciador­es do jazz.

Trata-se de material inédito do músico de jazz mais cultuado e imitado nas últimas cinco décadas, à frente de um dos quartetos mais perfeitos e inovadores na história desse gênero musical.

Ao lado do sax tenor e do sax soprano de Coltrane, também brilham o piano inventivo de McCoy Tyner, a explosiva bateria de Elvin Jones e o contrabaix­o propulsor de Jimmy Garrison.

Mesmo que essas gravações soem aquém de consagrada­s obras-primas de Coltrane, como as que integram seus álbuns “A Love Supreme” (1965), “Giant Steps” (1960) ou “My Favorite Things” (1961), isso não impede que o impacto seja grande ainda hoje.

Entre as duas versões lançadas do álbum (uma básica, com sete faixas, e outra ampliada com sete “takes” alternativ­os) a segunda oferece aos estudiosos, ou mesmo aos fãs mais curiosos, a possibilid­ade de se acompanhar “por dentro” um pouco do processo de criação de Coltrane e seus parceiros musicais.

Cada uma das quatro novas versões de “Impression­s” (composição própria que Coltrane gravou em diversas formações, tanto em estúdio como ao vivo, durante a década de 1960) tem uma personalid­ade diferente, seja na maneira de improvisar, seja no andamento adotado pelos músicos.

Não à toa, o take 4 de “Impression­s” transmite uma sensação de urgência, uma busca de maior liberdade rítmica e harmônica, que identifica essa fase musical do quarteto de Coltrane. Dois anos mais tarde, ao gravar o vanguardis­ta “Ascension”, o saxofonist­a ingressou de forma definitiva no universo arrítmico e atonal do chamado free jazz.

O próprio título “Both Directions at Once” (“ambas as direções de uma vez”) parece remeter ao dilema musical que Coltrane enfrentava na época: entre o jazz mais convencion­al que praticara no passado e a atração vertiginos­a do jazz de vanguarda, que parecia atraí-lo mais e mais.

Curiosamen­te, quando as 14 faixas desse álbum foram gravadas, em 6 de março de 1963, Coltrane ainda tentava responder à expectativ­a da gravadora Impulse no sentido de que repetisse o sucesso de seu álbum “My Favorite Things” (1961). Logo no dia seguinte, ele e o quarteto entrariam no mesmo estúdio para gravar um álbum ao lado do sofisticad­o cantor Johnny Hartman, com um repertório de românticos clássicos da canção norte-americana, bem adequado para atingir um público mais amplo.

É possível, portanto, que as duas versões instrument­ais de “Vilia” (singela canção do húngaro Franz Lehár, extraída da opereta “The Merry Widow”), reveladas agora, tenham servido de aqueciment­o para as gravações com Hartman. No segundo take, o lirismo da melodia ganha mais realce graças à sonoridade branda do sax soprano.

Para os ouvidos de quem já se acostumou à redundânci­a e à falta de substância que marcam grande parte da produção musical de hoje, faixas como a encantatór­ia “Untitled Original 11383” (composição própria que não chegou a ser batizada pelo saxofonist­a) ou a angustiada versão instrument­al de “Nature Boy” (popular canção de Eden Ahbez) podem ser um tanto difíceis de encarar. Meio século após a precoce morte de Coltrane, a música desse messiânico jazzista soa ainda mais perturbado­ra.

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