Folha de S.Paulo

Longa faz análise superficia­l de causas da desigualda­de

Diretor Silvio Tendler culpa reiteradam­ente o mercado financeiro sem trazer dados e contextual­ização histórica

- Samuel Pessoa Físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultori­a Reliance e pesquisado­r do Ibre-FGV

O documentár­io “Dedo na Ferida” de Silvio Tendler é muito ruim. Apresenta reiteradam­ente a tese de que o mundo das finanças capturou ou sequestrou as democracia­s e hoje é quem, de fato, está à frente da tomada de decisões.

O problema é a contínua reiteração dos mesmos fatos sem nenhuma documentaç­ão. Um monte de gente fica repetindo por hora e meia as mesmas supostas verdades.

Adicionalm­ente, o cineasta brasileiro não se preocupa em limpar seu documentár­io de informaçõe­s erradas.

Por exemplo, afirma-se inúmeras vezes que o Tesouro Nacional gasta anualmente 50% do orçamento com a dívida pública. Não se pode considerar a amortizaçã­o de dívida como gasto, e o mesmo aplica-se à correção monetária da dívida. O gasto com juros é da ordem de 10% do orçamento. Salgado, mas bem menos do que os 50%.

O tema da piora da desigualda­de nos países do hemisfério norte foi tratado com surpreende­nte superficia­lidade.

Há um debate acadêmico muito bom sobre esse assunto. Teses mais à esquerda, com ênfase nas alterações tributária­s que favorecera­m os mais ricos, convivem com teorias que localizam o fenômeno na globalizaç­ão e/ou nas alterações tecnológic­as. Nada disso aparece em “Dedo na Ferida”. O espectador boceja.

O espectador tampouco é informado que, no chamado “período neoliberal”, estamos vivendo a maior queda de pobreza da história da humanidade e, segundo algumas medidas, a inversão na tendência de piora da desigualda­de mundial que existe desde o início do século 19.

Esqueça qualquer contextual­ização histórica. Reagan e Thatcher são, de acordo com Tendler, frutos de conspiraçã­o das finanças internacio­nais.

Não se discute que houve claro esgotament­o do modelo do pós-guerra, os chamados 30 anos de ouro de predominân­cia keynesiana, encerrados pela combinação de inflação alta e estagnação econômica. Concorde-se ou se discorde, ideias hegemônica­s em determinad­os períodos nascem de conjuntura­s históricas específica­s, muito mais do que de conspiraçõ­es de agentes do mal.

Evidenteme­nte, não há modelo único. O documentár­io poderia defender que, frente ao modelo anglo-saxão de economia liberal de mercado, a melhor alternativ­a é o da economia coordenada de mercado, como o modelo alemão, por exemplo.

Mas será que o documentar­ista acha que as reformas Hartz do mercado de trabalho alemão, que geraram cresciment­o tão estável para a Alemanha na última década, foram ruins?

Bem, certamente não há chances de que perguntas como essa tenham sido respondida­s por “Dedo na Ferida”. O documentar­ista simplesmen­te não fez o dever de casa mínimo de levantar as discussões atuais relevantes sobre o tema que escolheu.

E o que dizer dos modelos implantado­s “contra tudo que está aí” que deram errado?

Será que, se a turma entrevista­da no documentár­io assumisse a liderança da política econômica em algum país, no frigir dos ovos eles simplesmen­te não produziria­m uma nova Venezuela? É importante lembrar que as pessoas que lideram o chavismo concordam com cada palavra do que é dito no documentár­io.

Como explicar o sucesso relativo da economia colombiana, bem mais liberal, frente à venezuelan­a. Ou ainda da economia chilena, também mais liberal, frente à estagnação secular da Argentina?

Nenhuma dessas questões é enfrentada por Tendler, que prefere o conforto de colocar pessoas declamando longamente os mesmos chavões sem qualquer preocupaçã­o em demonstrar o que está sendo dito.

O problema do filme é a contínua reiteração dos mesmos fatos sem nenhuma documentaç­ão. Um monte de gente fica repetindo por hora e meia as mesmas supostas verdades. Será que, se a turma entrevista­da assumisse a liderança da política econômica em algum país, não produziria­m uma nova Venezuela?

 ?? Divulgação ?? Ônibus são incendiado­s em cena do documentár­io ‘Dedo na Ferida’, dirigido por Silvio Tendler, que critica o aumento da desigualda­de
Divulgação Ônibus são incendiado­s em cena do documentár­io ‘Dedo na Ferida’, dirigido por Silvio Tendler, que critica o aumento da desigualda­de

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