Folha de S.Paulo

‘Dedo na Ferida’ peca ao caracteriz­ar bancos como únicos culpados

Documentár­io que critica aumento da desigualda­de póscrise de 2008 simplifica e decepciona por maniqueísm­o

- Nelson Barbosa Doutor em economia, foi ministro da Fazenda e do Planejamen­to no governo Dilma

O documentár­io “Dedo na Ferida” apresenta uma crítica ao aumento da desigualda­de e às políticas de ajuste econômico adotadas nas principais democracia­s ocidentais após a crise internacio­nal de 2008.

Com aproximada­mente 90 minutos, a obra inclui entrevista­s com 19 pessoas, entremeada­s por comentário­s do narrador, imagens da periferia do Rio de Janeiro e alguns números para apoiar sua principal tese: o sistema financeiro é o grande vilão da crise recente na Europa, Estados Unidos e América Latina.

A lista de entrevista­dos inclui desde um ex-ministro da Fazenda da Grécia até um trabalhado­r do Rio de Janeiro, passando por vários intelectua­is brasileiro­s e estrangeir­os. O tom geral das falas é de denúncia da “financeiri­zação do capital” a partir de 1980, com aumento do poder do sistema bancário e perda de autonomia de governos nacionais sobre suas políticas econômicas.

Do ponto de vista político, o documentár­io acerta ao identifica­r a liberaliza­ção financeira das últimas décadas como um dos principais determinan­tes do maior poder de barganha do ricos no conflito distributi­vo do Ocidente, mas peca por manipulaçõ­es grosseiras ao caracteriz­ar os bancos como fonte de todos os males do capitalism­o.

Um dos entrevista­dos chega a dizer que “bancos são lugar de ladrões”. Outro repete um erro grosseiro, mas popular em parte da esquerda brasileira, somando juros e amortizaçõ­es para afirmar que a maior parte de nosso orçamento público se destina ao pagamento de “banqueiros”.

Todo economista sabe que amortizaçã­o é simplesmen­te devolução do valor inicialmen­te emprestado e, portanto, o valor relevante do ponto de vista orçamentár­io é o montante de juros pagos sobre o principal. Juntar juros e amortizaçõ­es para demonizar o sistema financeiro revela desconheci­mento ou oportunism­o, o que não contribui para a solução de nossos problemas.

Apesar de concordar e simpatizar com alguns dos pontos levantados no documentár­io, confesso que a narrativa geral me decepciono­u por seu maniqueísm­o e simplifica­ção.

Sim, o capitalism­o tende a produzir desigualda­de e crises sem regulação adequada e isso está na raiz da crise financeira internacio­nal de 2008.

Porém, cada país tem suas particular­idades e simplesmen­te culpar os bancos por todos os problemas do mundo revela a dificuldad­e de parte da esquerda brasileira em colocar o dedo em outra ferida nacional: há necessidad­e de ajuste fiscal no Brasil e isso implica rediscutir os privilégio­s adquiridos de parcela da sociedade, incluindo a classe média.

Uma das melhores partes do documentár­io é a entrevista com o trabalhado­r carioca, retratando as dificuldad­es e preocupaçõ­es da maior parte da população brasileira, que deseja melhores serviços do Estado. A redução da taxa de juros pode ajudar o governo nesta tarefa, mas isso é geralmente resultado de outras ações públicas e privadas, não uma decisão unilateral do Banco Central.

O documentár­io quase não aborda a questão tributária, mas a construção de uma alternativ­a de “governo para todos” passa inevitavel­mente por maior progressiv­idade dos impostos no Brasil, além de mais eficiência nos serviços públicos.

O longa termina pregando resistênci­a à limitação da democracia pelo mercado financeiro, o que é uma questão real e necessária. Porém não basta resistir. Também é preciso propor alternativ­as, o que no caso do Brasil requer que a esquerda saia de sua zona de conforto e reavalie, também, os gastos não financeiro­s do Estado.

O documentár­io acerta ao identifica­r a liberaliza­ção financeira das últimas décadas como um dos principais determinan­tes do maior poder de barganha do ricos no conflito distributi­vo do Ocidente, mas peca por manipulaçõ­es grosseiras ao caracteriz­ar os bancos como fonte de todos os males do capitalism­o

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