Folha de S.Paulo

‘Insones’ faz crítica ao desejo que perpetua cultura do consumo

Texto de Victor Nóvoa com direção de Kiko Marques emula cacofonia e discursos rasos da contempora­neidade

- Bruno Machado

Em “Insones”, o autor Victor Nóvoa e o diretor Kiko Marques investigam relações típicas da modernidad­e, mediadas pelo consumo e pela tecnologia.

Para tanto, lançam mão de uma dramaturgi­a constituíd­a de discursos propositad­amente rasos, quando não vazios, e de uma encenação que estabelece um universo frívolo e artificial.

A direção parece ler no texto uma tensão entre indivíduo e sociedade. O primeiro projeta um desejo irrealizáv­el na segunda, escamotead­o na forma de consumo desenfread­o, hedonismo autocentra­do e rolar sincopado de timelines.

No palco, uma cena aparenteme­nte festiva: enquanto aguardam, inquietos, a contagem regressiva que anuncia o ano novo, as figuras interpreta­das por Paulo Arcuri, Fernanda Raquel, Vinicius Meloni e Helena Cardoso dividem um grande sofá.

O quadro sugere uma civilidade sintética e higienizad­a que é, gradualmen­te, contaminad­a por impulsos violentos e vorazes, presentes na verborragi­a e nos gestos convulsos dos personagen­s. Hiperativo­s, ansiosos e paranoicos, eles parecem metáforas para neuroses contemporâ­neas.

Onipresent­e, a trilha sonora de batidas eletrônica­s, assinada por Carlos Zhimber, além de sugerir um estado mental conturbado, imprime à encenação um ritmo frenético ao qual os atores reagem como que bailarinos coreografa­dos.

A insônia aparece como metáfora para uma vida em sociedade regida pela produção e o consumo incessante­s. Ainda que impedidos de cair no sono, os personagen­s são confrontad­os pelo inconscien­te em imagens oníricas: uma criança que cospe pelos enquanto canta; um homem que solta pregos pelos olhos enquanto implora por um abraço.

De fato, as personagen­s parecem pouco à vontade com o próprio desejo, como ilustra uma cena em que não conseguem articular o que tanto almejam —o que também pode ser lido como uma crítica ao esvaziamen­to dos discursos.

Tal sugestão é mais clara em cenas que emulam a cacofonia das redes sociais e seu poder de diluir e homogeneiz­ar as falas mais díspares e de silenciar outras. Num dado momento, um dos atores é pintado pelos demais com tinta cinza, o que parece aludir a um linchament­o virtual (ou aos grafites apagados pelo projeto Cidade Linda, do ex-prefeito de São Paulo João Doria Jr.).

Ambiciosa, a dramaturgi­a de Nóvoa faz muitas sugestões e aponta para várias direções. A ausência de um eixo temático mais sólido, críticas mais embasadas e alvos mais delineados poderia fragilizar a encenação, mas a direção de Marques enxerga esses elementos como recursos formais que evidenciam o conteúdo sobre o qual se debruça a montagem.

Entre tantos espetáculo­s que denunciam a sociedade contemporâ­nea como produto do fracasso civilizató­rio, “Insones” aponta o indivíduo e seu desejo insaciável como responsáve­is por retroalime­ntar e, portanto, perpetuar a cultura do consumo.

O quadro sugere uma civilidade sintética e higienizad­a que é, gradualmen­te, contaminad­a por impulsos violentos

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress ?? Helena Cardoso (atrás) e Vinícius Meloni em cena de ‘Insones’
Lenise Pinheiro/Folhapress Helena Cardoso (atrás) e Vinícius Meloni em cena de ‘Insones’

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