Folha de S.Paulo

O futebol como ele é

Copa 2018 ensina que esse esporte precisa de caos, injustiça e muita falsidade

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Toda a gente conhece a piada: o beisebol só é suportável porque existe a cerveja.

Concordo. Já tive a experiênci­a. Pena que os chatos, que dominam o mundo, em geral, e o esporte, em particular, queiram fazer o mesmo com o futebol.

Um exemplo: Simon Jenkins, uma das vozes lúcidas do The Guardian, sugere que os pênaltis devem ser abandonado­s. O futebol é um jogo de equipe?

Então é injusto fazer repousar a decisão de um jogo na sorte (ou no azar) de um indivíduo.

Jenkings não pretende regressar ao mundo pré-1978 quando os empates eram decididos por uma moeda lançada ao ar. É possível olhar para as estatístic­as (a equipe que chutou mais no gol; a equipe que teve mais posse de bola; a equipa que cometeu menos faltas; etc.) e decidir o vencedor. Embora a opção do colunista seja outra: alargar o tamanho do gol, por exemplo; ou, então, remover do campo o goleiro no tempo da prorrogaçã­o.

Sou contra. Frontalmen­te. Eu gosto dos pênaltis. Eu gosto da injustiça do momento. Eu gosto da dimensão trágica que desce ao gramado. Eu gosto da angústia dos jogadores, dos falhanços épicos, do choro e da ruína.

Nesses momentos, o futebol consegue atingir o patamar da grande arte. E a grande arte é sempre uma metáfora da vida —da beleza, do desastre, da imperfeiçã­o que a define.

E quem fala em tragédia, fala em comédia. Nunca entendi a hostilidad­e a Neymar. O jogador gosta de fingir? Gosta de simular dores homéricas quando alguém sopra para cima dele?

Pois gosta —e ainda bem: todos os gênios têm sempre algo de farsante. Só cabeças quadradas não entendem. Uma delas, aliás, publicou um artigo ridículo no Wall Street Journal sobre as “estatístic­as” de Neymar.

Na Copa, e antes do jogo fatídico com a Bélgica, o craque teve 43 quedas; esteve no chão 8 minutos e 15 segundos; o maior período de abstinênci­a (tradução: sem fingimento) durou 34 minutos e 16 segundos (contra o México).

E parece que Neymar caiu mais quando o Brasil estava empatado (média de 9 segundos no gramado) embora tenha demorado mais tempo a recuperar quando o Brasil estava vencendo (média de 15 segundos).

Terminei o artigo com uma pergunta: que tipo de mente perturbada compila esses números?

Eu sei que tipo de mente: a mesma que recebe de braços abertos o lamentável juiz de vídeo. A esse respeito, um pouco de nostalgia: comecei a gostar de futebol por causa de um jogador português que, normalment­e, não figura nos grandes livros de história. Não é um Eusébio, um Figo, um Cristiano Ronaldo. Para mim, é maior que esses todos.

O nome é Paulo Futre e lembro-me de o ver jogar, vestindo a camiseta da minha equipa (o FC Porto), com o meu saudoso pai ao lado. Teria uns 10 anos.

Recordo a velocidade. Os dribles. Os gols. Mas recordo, sobretudo e acima de tudo, o seu talento para cair na grande área. “Cair” não é o verbo; é “morrer” mesmo. Quando o defesa da equipe adversária se aproximava dele, Futre conseguia contorcer o corpo de uma forma tão agonizante que o público gritava: “Mataram-no!”

Havia choro. Havia luto. Mas, subitament­e, como nos filmes de Carl Theodor Dreyer, Futre erguia-se e regressava ao mundo dos vivos. Era um milagre —e as bancadas desabavam em hossanas.

Houvesse juiz de vídeo em 1986 e esses momentos de pura cinefilia seriam impensávei­s. E Futre, o primeiro Lázaro que conheci, não teria espalhado a sua arte pela Europa, onde o vi morrer mil vezes. E mil vezes ressuscita­r.

Se essa Copa ensina alguma coisa é que a salvação do futebol não passa por“rigor ”,“justiça” ou “verdade ”. Precisa de caos, injustiçae muita falsidade. Como proceder? Três medida surgentes.

Primeira: abandonar o juiz de vídeo. Na vida, não podemos recuar no tempo para rever e corrigir os piores momentos. Vivemos com eles porque isso é um imperativo de caráter. O mesmo vale para o futebol.

Segunda: no empate, manter os pênaltis. Ou, preferênci­a minha, promover confrontos individuai­s: o jogador, radicalmen­te só, avança co mabola a partir do meio do campo. À sua frente, um adversário, igualmente só, da outra equipe. Manter o goleiro. No fundo, uma reatualiza­ção dos duelos medievais.

Terceira: não permitir que os jogos sejam narrados por “eruditos”. Você entende: jornalista­s sem paixão que confundem futebol com física quântica. Em caso de dúvida, escutar no YouTube o jornalista da TV argentina que festejou o gol de Maradona frente a Inglaterra na Copa do México em 1986. Falo do segundo gol, quando Maradona driblou uma equipa inteira (goleiro incluso). Ali está a Maria Callas do futebol como ele é.

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Ângelo Abu

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