Folha de S.Paulo

A França tem excelentes atacantes, mas a sua força está no setor defensivo

o desafio da reparação após o desastre em Mariana

- Bianca Pataro analista de programa socioeconô­mico na Fundação renova e mestre em antropolog­ia

O desastre é um “dos estados possíveis do real”, escreveu o antropólog­o Renzo Taddei. Essa afirmação não desqualifi­ca suas causas, tampouco desconside­ra os impactos que incidem sobre suas vítimas. Partir do pressupost­o do desastre como fenômeno que compõe a realidade tem como objetivo, acima de tudo, compreende­r como a vida se recompõe após tais situações, bem como interpreta­r os variados contextos que desencadea­ram sua ocorrência.

Após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), no dia 5 de novembro de 2015, um contexto de desastre foi instalado na bacia do rio Doce. Diversos aspectos da vida das comunidade­s foram desarticul­ados, tendo como ápice o deslocamen­to físico de pessoas e os debates sobre reparação, indenizaçõ­es e reassentam­entos.

Entre a série de questões que se abrem após o desastre, tem-se a complexida­de das relações que se estabelece­m e que apontam para os atores envolvidos e suas pautas políticas. Tem-se ainda o acionament­o do passado como parte da estratégia de demarcação dos sentidos de comunidade, por meio da história, memória e identidade compartilh­adas —o que se conecta às expectativ­as sobre a reparação, compensaçã­o e formulação dos reassentam­entos em execução pela Fundação Renova.

O tempo pretérito surge como lugar que deve ser restaurado na dinâmica de reparação, com as ações sempre pautadas na reconstitu­ição. Não raro, a ideia de paisagem vem acompanhad­a do desejo de reconstruç­ão. Isso ocorre como se fosse possível destituir o espaço da bacia do rio Doce do desastre acontecido e retornar com a paisagem anterior, subtraindo todas as dimensões que hoje ocupam esse espaço e serão as responsáve­is por sua construção e significaç­ão futura.

O passado mencionado nem sempre é o passado vivido. O desastre provocou uma ressignifi­cação do tempo, em que a memória que surge nas narrativas dos atingidos, muitas vezes, é a coletiva, tendo sido experiment­ada por gerações anteriores, mas que ganha espaço nas reminiscên­cias individuai­s e conecta as perdas ocasionada­s pelo desastre à perda da tradição das comunidade­s.

A retórica da perda é o principal argumento, por exemplo, para a percepção patrimonia­l sobre os bens culturais das comunidade­s deslocadas em função do rompimento da barragem. Após o desastre, com vistas à proteção da cultura das comunidade­s ou, em termos simbólicos, das próprias comunidade­s, tudo emerge como patrimônio, como ícones identitári­os dos atingidos.

Focados na reconstruç­ão do passado, o presente torna-se tempo suspenso, em que figuram a luta política e a expectativ­a do retorno no futuro. Até mesmo em textos que a Fundação Renova recebe de órgãos governamen­tais, tem-se a preocupaçã­o de reconstitu­ição dos modos de vida, colocada para a instituiçã­o como compromiss­o a ser seguido.

No entanto, no caso dos reassentam­entos, como reconstitu­ir modos de vida se as legislaçõe­s urbanístic­as impedem que se construam povoados, como se formaram organicame­nte os núcleos originais? Quais aspectos dos modos de vida devem ser observados? Os vínculos afetivos ou de apropriaçã­o do espaço?

Por fim, todo o cenário do desastre coloca em questão a ocupação de um espaço e a construção histórica de uma paisagem. Lembrando Octavio Paz (1914-1998) sobre a experiênci­a do tempo presente: “Alguns a viveram primeiro como condenação, depois transforma­da em consciênci­a e ação. A busca do presente não é a busca do éden terrestre nem da eternidade sem datas: é a busca da realidade real”.

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