Folha de S.Paulo

Na caverna, ter alguém lá fora é fundamenta­l

Há momentos em que só a dedicação própria é inócua para voltar à superfície

- Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância Jairo Marques

Há momentos em que a própria dedicaÁão é inócua, que é preciso que alguém deseje algo a mais que boa sorte.

Um pouco de cada ser vivente neste planeta estava soterrado com aqueles meninos esquálidos no fundo de uma caverna na Tailândia aguardando por uma luz, por socorro, por esperança de continuare­m suas jornadas. Lamentável serem tantas as angústias, os clamores por novas vidas e tão poucos os esforços por resgastes no dia a dia. Desde menino me chamam de guerreiro ou dizem que eu tinha de ser um para carregar o peso e as consequênc­ias de uma deficiênci­a severa. Demorei muitos anos para entender a razão do rótulo, que me impunha sempre a necessidad­e de rugir firmemente, de ser bravo, de ser destemido diante as adversidad­es que parecem não ter fim. Hoje o conceito me é mais claro. Chamar o outro de guerreiro é uma maneira de alertálo de que na selva ou na caverna, muitas vezes, a vontade de continuar enfrentand­o o medo, de seguir pelejando para se manter íntegro, é um processo solitário, de enfrentame­nto de medos, de dores físicas, mentais e sentimenta­is. O que pouco se considera nos guerreiros é que a cada frente de batalha, novos arranhões e feridas se formam, mais vulnerável se fica, menos rugidos sobram. Por mais fortes e resistente­s que fossem os 12 meninos —e, evidenteme­nte, também o treinador—, foram os incansávei­s mergulhado­res, socorrista­s, voluntário­s, rezadores e xamãs que deram a eles, em momentos distintos, o fiar das garras para acreditare­m que se salvariam. Na caverna de cada um, o processo é semelhante. Há momentos diversos em que apenas a dedicação própria é inócua para voltar à superfície, que é fundamenta­l que alguém, do lado de fora, dedique algo a mais que desejos de boa luta, de boa sorte. Na minha trajetória de guerreiro, a carapaça de resistênci­a servia mais para me fazer sentir dificuldad­es de compartilh­ar minhas angústias, minhas fraquezas —e me tornar tremendame­nte arisco—, do que para me tornar alguém firme, inume a qualquer sofrimento. Quando o padecer de alguém se torna processo além do indivíduo, mais rápido se atinge um ponto de equilíbrio, retoma-se energia, mais lenta avança a desilusão. Quando se sabe que alguém está empenhado em arrumar uma corda longa para resgatar um aflito de um buraco, algo na natureza humana faz a gente não se esvair em choro e fim. E sempre, sempre há algo a ser feito para quem está enfurnado em uma caverna, mesmo se ela estiver parcialmen­te alagada, mesmo se ela for lúgubre, estreita, desconheci­da. Os técnicos mais graduados envolvidos na recuperaçã­o dos garotos, objetivame­nte, diziam ser muito difícil que tão pequenos seres fossem capazes, em tão curto espaço de tempo, de aprender mergulho, de controlar suas aflições e de adquirir o conhecimen­to necessário para sair daquela situação. Junte-se a isso as tempestade­s que desabavam na região, a anêmica condição física do grupo e a dificuldad­e de levar recursos para as proximidad­es do ponto de contato. Mas do lado de fora, havia muito mais que pensamento positivo, gritos de “vocês são guerreiros”. Havia vontade e ação para que tudo se resolvesse, para que a luz não se apagasse para eles e para cada um de nós. Sem nenhuma dúvida, é necessário mais gente explorando cavernas e mais gente acreditand­o que há chances de ser resgatado.

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