Folha de S.Paulo

Armas para todos

Bolsonaro quer transpor para cá disfunção americana

- Roberto Feith Fundador e ex-diretor da ed. objetiva (adquirida pela Cia. das letras em 2016), ex-correspond­ente da tV Globo na europa e ex-diretor do Globo repórter; portador de cidadania brasileira e americana

Nas suas aparições públicas, o candidato que lidera as pesquisas para a eleição presidenci­al costuma saudar o povo apontando um rifle imaginário. Em evento em Curitiba, Jair Bolsonaro disse que “a arma é a garantia de nossa liberdade”. “Da próxima vez, quero ver 200 pessoas armadas aqui dentro”. O candidato propõe revogar o Estatuto do Desarmamen­to e não esconde sua admiração pela legislação norte-americana sobre armas de fogo.

A notícia, dias atrás, de mais um massacre de inocentes na cidade americana de Annapolis demanda uma reflexão sobre a proposta de Bolsonaro. As armas pontuam a história da nação mais rica do planeta. Os EUA conquistar­am a independên­cia com um exército de voluntário­s, muitos com suas próprias armas. Oito décadas depois, uma Guerra Civil na qual foram usadas pela primeira vez armas de repetição matou 680 mil americanos.

O fascínio pelas armas também ocupa espaço singular na cultura americana. A expansão para o oeste gerou a figura do cowboy, solitário, pronto a sacar o seu revólver. Nas produções de Hollywood, talvez a mais eloquente expressão da alma americana, as armas são presença constante.

Na vida cotidiana, esse culto se traduz na facilidade que o americano comum tem para comprar uma arma. Os EUA são a única sociedade economicam­ente avançada na qual fuzis automático­s de uso militar são vendidos nos hipermerca­dos.

Os americanos pagam um alto preço por esse fascínio. Adolescent­es têm uma probabilid­ade 82 vezes maior do que seus pares em nações avançadas de serem mortos por armas de fogo. Desde 1982, houve 104 “mass shootings” nos EUA — incidentes nos quais quatro pessoas ou mais foram assassinad­as por um desconheci­do portando arma de fogo— provocando a morte de 822 inocentes. Essa triste estatístic­a representa menos de 1% do total de fatalidade­s provocadas por armas de fogo no país.

Não existe, entre nós, culto às armas do calibre norte-americano, mas somos um país violento. Em 2016, 62 mil brasileiro­s foram mortos por armas de fogo. O número vem crescendo, assim como crescem o crime organizado e a violência nas nossas cidades. Os brasileiro­s, principalm­ente os mais pobres, vivem atemorizad­os pelo banditismo.

É nesse contexto que surge a proposta de Bolsonaro de livre acesso às armas. O deputado tem razão em exigir o combate eficaz ao crime. Mas a retórica não elimina os fatos, e o fato é que distribuir armas à população não resulta na redução da criminalid­ade.

Estudo abrangendo 27 países publicado no American Journal of Medicine revela que a posse de armas por civis não altera os índices de criminalid­ade, mas eleva a taxa de mortes por armas de fogo. Este e outros estudos demonstram que o cidadão que compra uma arma tem muito mais chance de usá-la, ou vêla sendo usada contra si ou seus familiares, do que em defesa própria.

Jair Bolsonaro poderia buscar inspiração para suas propostas em alguma caracterís­tica da vida norte-americana digna de admiração, como o respeito à meritocrac­ia, a qualidade do ensino superior ou a incessante inovação tecnológic­a. Em vez disso, propõe transpor para o Brasil uma das disfunções da sociedade norteameri­cana. Ao posar com seu fuzil imaginário para seguidores, Bolsonaro encena uma ideia equivocada, de fácil apelo e cuja adoção só provocaria a morte de mais inocentes.

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