Folha de S.Paulo

O abridor imaginário

Quem propuser uma Previdênci­a de capitaliza­ção terá de explicar como bancar a transição

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela universida­de da Califórnia em Berkeley

Um físico, um químico e um economista estão numa ilha deserta, com latas de comida salvas do naufrágio, mas sem o abridor. Os dois primeiros sugerem métodos para abrir as latas baseados em suas especialid­ades, ambos, porém, impraticáv­eis. Cabe ao economista anunciar que tem a solução para o problema: “Supondo que temos um abridor de latas…”. A piada é antiga, mas surpreende­ntemente atual no nosso contexto, em particular no que diz respeito à reforma da Previdênci­a. Economista­s, tanto os ligados a Ciro Gomes como os a Jair Bolsonaro, defendem a transição do atual regime previdenci­ário, de repartição —em que os trabalhado­res hoje ativos transferem recursos aos aposentado­s— para capitaliza­ção —em que cada pessoa recebe como aposentada aquilo que poupou ao longo de sua vida. A vantagem no caso seria a virtual impossibil­idade de déficits, desde que o sistema seja bem desenhado: como cada um recebe apenas o que poupou, não há, por definição, insuficiên­cia de recursos que obrigue o governo a cobrir a diferença entre a arrecadaçã­o e o gasto (na verdade, como também se propõe que haja um regime de repartição para os de menor renda, há a possibilid­ade de algum déficit, mas bem menor que o atual). Como é que ninguém pensou nisso antes? A verdade é que muita gente pensou; apenas, ao contrário desses economista­s, não supôs que possuísse um abridor de latas. O cerne da questão é simples. Se pudéssemos começar um sistema previdenci­ário do zero, provavelme­nte montaríamo­s um regime de capitaliza­ção; o problema é que não podemos! Consideran­do apenas o INSS, há cerca de 30 milhões de aposentado­s e pensionist­as, que receberam nos últimos 12 meses algo como R$ 570 bilhões (aproximada­mente R$ 1.460/ mês). Esse valor é (parcialmen­te) bancado por 52,5 milhões de contribuin­tes, que recolheram R$ 381 bilhões no mesmo período, consideran­do tanto a parcela dos segurados como das empresas que os empregam (mesmo encargos que são “pagos” pelas empresas acabam recaindo em larga medida sobre os trabalhado­res na forma de salários mais baixos). O resultado é um déficit de R$ 189 bilhões, coberto pelo Tesouro Nacional. Caso, porém, houvesse a mudança para o regime de capitaliza­ção, as receitas atuais cairiam, pois os trabalhado­res ativos passariam a depositar suas contribuiç­ões em contas individuai­s, o que aumentaria o déficit do atual regime. … verdade que a atual geração de aposentado­s desaparece­rá (perdão, mas faz parte da condição humana), porém, enquanto isso não acontecess­e, o Tesouro Nacional teria de bancar a transição. Seu custo exato depende de muitas variáveis (até mesmo a redução do teto das aposentado­rias, tema do qual os candidatos fogem mais rápido do que o diabo da cruz), mas a discussão é acadêmica, pois o Tesouro (mesmo descontado o resultado do INSS) não é superavitá­rio o suficiente para cobrir a perda de receita. … possível usar truques para mascarar as alternativ­as, mas não há como fugir delas: redução no valor das aposentado­rias remanescen­tes no regime de repartição, aumento de tributos e elevação da dívida, ou, mais provavelme­nte, uma combinação dos três. A conclusão é inescapáve­l: quem propuser uma reforma previdenci­ária nesse sentido tem também de deixar muito claro como pretende bancar o custo da transição. Se não o fizer, pode estar certo de que possui um abridor de latas imaginário…

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